Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

No período a seguir, fiquei com uma dúvida atroz, «Todos foram à festa, inclusive eu.»

«Inclusive eu» será uma oração assindética com o verbo elidido? Se «inclusive eu» fosse parte do sujeito composto, deslocado, o verbo não deveria estar na 1.ª pessoa do plural? «Todos fomos a festa, inclusive eu.»

Nesse caso, o termo «inclusive eu» não será um pleonasmo de vício [de linguagem], visto que a desinência verbal já denotaria que o locutor também fora à festa? Portanto, minha escolha seriam duas orações, a segunda com o verbo elidido: «Todos foram à festa, inclusive eu (fui).»

Grato.

Resposta:

O constituinte «inclusive eu» é, na frase em análise, um aposto de todos. Em termos semânticos, poderemos considerar que a forma verbal fui foi elidida deste constituinte. A sua elipse ocorre porque se trata de material linguístico facilmente recuperável.

Como afirmam Brito e Raposo, um «uso dos apostos consiste em dar informação sobre os membros de um conjunto expresso por um sintagma nominal quantificado, quer através de uma especificação completa ou parcial dos seus membros, quer através da menção de subconjuntos extensionalmente mais restritos» (in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1112). Neste caso particular, o sintagma «inclusive eu» incide sobre todos, especificando uma parte desse conjunto (o “eu”), na qual se pretende colocar o foco informativo,acrescentando, eventualmente, ainda um valor que destaca a pouca probabilidade que existia de o eu pertencer ao grupo referido. 

Disponha sempre!

Pergunta:

A frase «o filme é divertido de assistir» é ambígua?

Resposta:

A frase é aceitável, tendo, sem outro contexto, um valor de afirmação de valor genérico, ou seja, que é válida para qualquer situação/pessoa.

Quando seleciona um complemento nominal, o adjetivo divertido rege habitualmente a preposição com:

(1) «Ele está divertido com este filme.»

Todavia, este adjetivo pode também selecionar como complemento uma oração infinitiva, como acontece na frase apresentada pelo consulente. Neste caso, o complemento do adjetivo pode ser introduzido pela preposição de, que não é propriamente regida pelo adjetivo, mas que funciona como introdutora do complemento. Esta possibilidade é referida por Pilar Barbosa: «Há adjetivos que não regem nenhuma preposição em particular. Nestes casos, é inserida a preposição de. Esta preposição tem a função puramente gramatical de estabelecer uma relação de subordinação entre o adjetivo e o seu complemento» (in Barbosa et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1876).

Relativamente aos adjetivos que exprimem emoções, acrescenta ainda Hernanz (apud Raposo e Raposo): «alguns adjetivos que exprimem emoções ou estados de espírito, como aborrecido, alegre, assustado, contente, envergonhado, triste e zangado, e que se usam frequentemente de modo intransitivo, podem também combinar-se com uma oração infinitiva, a qual pode ser introduzida por de ou por por» (in idem. Ibid., p. 1940).

De acordo com o que ficou dito, a frase é aceitável. Refira-se que é também possível construir a oração ...

Pergunta:

Na canção "Lisboa, menina e moça" de Carlos do Carmo, gostaria de saber o significado dos seguintes versos: «Na cambraia de um beijo» e «cidade a ponto luz bordada».

Agradeço desde já o vosso trabalho.

Resposta:

Ambos os versos têm um sentido metafórico, pois assentam numa «associação de semelhança implícita entre dois elementos», transpondo sentidos de uma palavra / expressão para outra (cf. E-dicionário de termos literários).

E o que acontece em «Na cambraia de um beijo», expressão que associa a suavidade e a delicadeza da cambraia ao beijo que se dá.

No caso do verso «Cidade a ponto luz bordada», associa-se a minúcia dos pontos de um bordado à diversidade de pontos de luz que compõem o todo que é a cidade, que parece ter sido construída / bordada com base nesses mesmos pontos de luz. É esta conceptualização da cidade que permite, logo no verso seguinte, transformá-la numa «Toalha à beira-mar estendida».

Disponha sempre!

Pergunta:

Quando não há verbo depois, usa-se, de acordo com a norma padrão portuguesa, o pronome ele ou si, neste caso: «o predomínio exercido sobre ele», ou «sobre si»?

Muito obrigado!

Resposta:

As duas opções estão corretas.

O pronome pessoal com a forma si usa-se como complemento de preposição tanto na 3.ª pessoa do singular (masculino ou feminino) como na 3.ª pessoa do plural (masculino ou feminino). De uma forma geral, a forma ele/ela/eles/elas pode ser usada nos mesmos contextos de complemento preposicional em que se usa o pronome si. Com efeito, para assinalar a reflexividade, tanto se pode usar a forma si como a forma ele, como se observa nos exemplos abaixo:

(1) «Ele fala de si (próprio).» / «Ele fala dele próprio.»

(2) «Ele faz o trabalho por si (próprio).» / «Ela faz o trabalho por ele próprio.»

(3) «Ele confessou que aquele autor exerce um predomínio sobre si.» / «Ele confessou que aquele autor exerce um predomínio sobre ele.»

Para o português de Portugal, leia-se também esta resposta.

Disponha sempre!

Pergunta:

«Ando sem me mover, falo calado,
O que mais perto vejo se me ausenta»

Nos versos 1 e 2, há presença de paradoxo?

«Falo» no verso 1 e «vejo« no verso 2 constituem uma sinestesia mesmo em versos diferentes?

Obrigado.

Resposta:

Os versos apresentados integram o poema «A uma ausência» de António Barbosa Bacelar (1610-1663). Neles é possível identificar dois paradoxos, não estando presente a sinestesia.

No primeiro verso, podemos considerar a existência de dois paradoxos, uma vez que o poeta explora a oposição de conceitos (e não apenas de palavras), reunindo-os num mesmo conceito, aparentemente contraditório. Com efeito, o sujeito lírico afirma que anda sem se mexer e que fala estando calado.

No segundo verso, não se identifica a presença de um paradoxo, uma vez que o sujeito lírico descreve uma situação em que aquilo que vê desaparece, ou seja, não explora efetivamente uma contradição, mas uma evolução que vai de algo que se deixa ver para algo que desaparece da vista.

Afirma-se no E-dicionário de termos literários, de Carlos Ceia, o seguinte em relação à sinestesia: «Processo estilístico que consiste na associação, pela palavra, de duas ou mais sensações pertencentes a registos sensoriais diferentes. A utilização de tal figura de retórica permite a transposição de sensações, ou seja, a atribuição de determinadas impressões sensoriais a um sentido que não lhes corresponde. Por exemplo, na expressão “aquela cor é gritante”, a perceção visual (cor) como que é ouvida, processo que acentua a intensidade da mesma.»

Assim, de acordo com este conceito, não consideramos que nos versos 1 e 2, o poeta associe sensações diferentes, transpondo característica de uma para outra.

Disponha sempre!