Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No Brasil, existe uma paroxítona muito usada, referente a uma tribo indígena: ianomâmi.

Entretanto, parece-me uma palavra estranha, já que o mais natural, a meu ver, seria escrevê-la com a letra é no final e sem o acento circunflexo: “ianomame”.

A pronúncia permaneceria a mesma, e a palavra estaria adequada à forma da maioria dos vocábulos da língua.

Resposta:

Compreende-se a argumentação do consulente, pois a grafia "ianomame" é possível. Porém, não é lida da mesma maneira pelos diferentes falantes de português.

Em Portugal e noutros países, a forma "ianomame" do etnónimo em questão não será lida com i final, mas soará, sim, com um e muito fechado, semelhante ao e átono ou mudo do francês. A forma ianomâmi, que representa uma palavra grave (ou seja, paroxíotna), permite a leitura do i final com as diferentes pronúncias das variedades do português. É esta a forma que se fixou na maioria dos diferentes vocabulários ortográficos disponíveis1.

Os Ianomâmis constituem um grupo étnico indígena que habita entre o nordeste do Amazonas, no Brasil, e a Venezuela. As línguas maternas ou tradicionais dos ianomâmis (ianomâmi, ianomam, ianam, sanumá) formam uma família linguística distinta de outras2.

 

1 Ianomâmi é a grafia registada no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras, no Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa do Instituto Internacional da Língua Portuguesa e no Vocabulário Ortográfico da Porto Editora (disponível na Infopédia). O termo não consta do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia d...

Pergunta:

Qual a etimologia de noite?

Obrigada!

Resposta:

Como já anteriormente se esclareceu, a palavra noite vem de nocte, forma do latim vulgar que corresponde ao latim clássico  nox, noctis.

Do latim nocte ao português noite, ocorreu a mesma transformaçao que levou de octo a oito, ou seja,  deu-se um fenómeno de vocalização no grupo latino -ct- tanto no português como noutras línguas românicas. Paul Teyssier, na sua História da Língua Portuguesa (Lisboa, Sá da Costa Editora, 1982, p. 12), referindo-se ao período galego-português, descreve esta mudança, em contraste com a evolução do espanhol (ou melhor, a sua génese castelhana):

«O grupo -ct- [...] passa a [-yt-]; ex.: nocte > *noyte. A língua portuguesa mantém ainda a pronúncia noite, enquanto o espanhol, continuando a evolução, apresenta hoje a africada [tš], escrita ch: noche. Temos assim:

galego- português                          castelhano

nocte > *noyte                                                  noite                                                 noche

Pergunta:

As palavras mares, rapazes, fáceis, dores, luzes têm como vogal temática a letra e ou esta faz parte da desinência indicativa de plural?

Resposta:

Nos casos dos plurais de nomes e adjetivos terminados em -r e -zmares, dores, rapazes, luzes –, considera-se que a vogal e constitui um segmento adicional para apoio da desinência de plural – diz-se que é uma vogal epentética –, pelo que pode afirmar-se que faz parte da desinência.

Já, com plurais de nomes e adjetivos terminados em -l, por exemplo, fáceis, a análise é feita de outro modo: o i é a realização fonética da consoante l, que faz parte do tema (fácil-).

Pergunta:

No décimo sétimo capítulo de A Queda de um Anjo, de Camilo Castelo Branco, consta a seguinte epígrafe: «In Liborium». Após alguma pesquisa, não consegui destrinçar o significado do vocábulo latino «Liborium», pelo que vos peço esclarecimento e uma tradução, se possível. Muito obrigado!

Resposta:

Liborium é uma das formas de Liborius, versão latina de Libório, que é o nome de batismo da personagem de Libório Meireles, do romance camiliano A Queda de um Anjo. Este nome, de origem obscura, é também o de um bispo da cidade francesa de Le Mans, S. Libório, que viveu no século IV (cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa).

Quanto ao título «in Liborium», diga-se que a preposição latina in pode significar «contra», pelo que «in Liborium» significa «contra Libório», nome da referida personagem camiliana. Este emprego da preposição in encontra-se, por exemplo, em Cícero (106 a. C.-43 a. C.): in deōs («contra os deuses», Cícero, Dē Nātūrā Deōrum 3.34, citado por Frederico Lourenço, Nova Gramática do Latim, Lisboa, Quetzal, 2019, p. 284). Na obra do mesmo autor latino, encontramos títulos que também ilustram este uso da preposição: In Catilinam («contra Catilina) e In Verrem («contra Verres»).

Pergunta:

Devemos escrever «Isto é coetâneo com o intuito de fazer alguma coisa de belo» (p.ex.) ou «Isto é coetâneo do intuito de fazer alguma coisa de belo»? No fundo, a minha dúvida prende-se com a questão de saber se (e porquê) devemos escrever «coetâneo com» ou «coetâneo de».

Obrigado.

Resposta:

Diz-se e escreve-se «coetâneo de», ou seja, o adjetivo coetâneo, que significa «que é da mesma idade, contemporâneo, coevo»1, constrói regência com a preposição de:

(1) «Ninguém presumirá que eu considere Calvino coevo de Voltaire, ou Damião de Góis coetâneo de Couriere.» (Camilo Castelo Branco, Boémia do Espírito in Francisco Fernandes, Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos, 23.ª edição, São Paulo, Globo, 1995)

A mesma regência têm os sinónimos contemporâneo e coevo.

É também possível a preposição a, segundo o dicionário de Francisco Fernandes (idem, ibidem):

(2) «Consta a ser a arquitetura militar coetânea do princípio do mundo.» (dicionário de Frei Domingos Vieira)

Esta preposição será, porém, muito rara ou estará em desuso, pois as coleções eletrónicas de textos literários e não literários (corpora) não parecem facultar abonações2.

Acrescente-se que não se vislumbra claramente uma razão de organização lógica ou semântica para a seleção preferencial da preposição de. Como se faz notar na Gramática do Português (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 1529), «a preposição de é aquela que a língua usa em contextos de completa gramaticalização, ou seja, em contextos nos quais a preposição não tem qualquer semanticidade e a sua única função consiste em estabelecer uma ligação entre um núcleo e o seu complemento ou modificador».

 

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