Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
433K

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

À semelhança de computorizado em alternativa a computadorizado, pode usar-se "empreendorismo" em alternativa a empreendedorismo?

Resposta:

A forma correta continua a ser empreendedorismo, e não se aceita "empreendorismo".

O caso de computorizado é um pouco diferente: está de facto descrito como resultado da queda da sílaba -do- na forma computadorizado1. Contudo, não será descabido conceber computorizar, «prover de computador, tratar por computador», e computorizado, «que está provido de computador, que é tratado por computador», como o aportuguesamento dos vocábuos ingleses computerise e computerised, com os mesmos significados. Mesmo assim, são formas discutíveis, e, portanto, há quem dê preferência às regulares, computadorizar e computadorizado.

Quanto à forma "empreendorismo", ao que parece recorrente entre vários falantes do português de Portugal, é esta provavelmente devida a um problema de dicção: a queda do e átono faz a palavra soar como "empreenddorismo", em que a dupla sequência consonantal pode ser realizada por uma consoante simples [d]. O termo inglês correspondente entrepreneurism, o mesmo que empreendedorismo, também não justifica a queda da sílaba em causa, dado que a sua base de derivação, entrepreneur, se distingue suficientemente de empreendedor (donde deriva empreendorismo) e não favorece uma reconfiguração da forma portuguesa.

 

1 Ver na Infopédia e no Di...

Pergunta:

Estou a fazer uma releitura das obras de João de Araújo Correia, conhecido pela sua correcção na escrita do português, e encontrei no livro "Terra Ingrata" no conto "A mulher do Narciso", a seguinte frase:

«No tanque onde as mulheres sujas procuravam desencardir os manachos em água estagnada...»

Procurei nos dicionários online, mas não encontrei significado para a palavra "manachos".

Será que me podem esclarecer?

Obrigado.

Resposta:

Pelo contexto, trata-se, com toda a probabilidade, de variante gráfica de manaxo, que, de acordo com o Novo Dicionário da Língua Portuguesa (1899), de Cândido de Figueiredo (1946-1925), significa, na região de Resende, rodilha (isto é, rosca de pano que se põe à cabeça, para transportar carga)1 e farrapo. A mesma fonte regista ainda a variante manaixo, que, na Beira, seria usado no sentido de «vestuário de mulher, garrido ou vistoso, mas de pouco preço».

No Dicionário de Regionalismo e Arcaísmos de Leite Vasconcelos (http://beta.clul.ul.pt/teitok/dra/index.php?match=starts&query=m&action=xdxf&start=100), também se regista manaixo, na aceção de «farrapo velho» e recolhido em São Martinho de Mouros (não longe, portanto de Resende), e outra variante "manoixo", ouvida em Baião.

João de Araújo Correia (1899-1985) usa a forma em questão, manacho, noutro conto de Terra Ingrata (1946):

(1) «Cavava a horta por suas mãos, fazia de comer, lavava os manachos [...].» (in

Pergunta:

Pode dizer-se que fr. é abreviatura da forma frei?

Obrigado.

Resposta:

Geralmente com maiúscula inicial, Fr. é abreviatura de frei.  Exemplo: Fr. Luís de Sousa (em vez de Frei Luís de Sousa).

A abreviatura em apreço tem tradição, encontrando registo, pelo menos, desde1940, ano em que a Academia das Ciências de Lisboa publicou o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, onde se consigna Fr. como redução de Frei1. Acrescente-se que, no Dicionário de Caldas Aulete (versão digital) se regista também a referida abreviatura: «s. m. || abreviatura das palavras freire e frade (que se escreve ordinariamente Fr.), de que se usa preceder os nomes dos frades e cavaleiros das ordens religiosas e militares: Frei Luís de Sousa; Frei Heitor Pinto.»

 

1 Pode não haver consenso quanto ao registo dicionarístico de Fr. com maiúscula inicial, como acontece no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, que apresenta fr., com minúscula inicial. No entanto, compreende-se que a redução em causa ocorra com maiúscula, pelo facto de, entre membros do clero regular, se associar aos nomes próprios, deles fazendo parte.

Pergunta:

A expressão «ruço de mau pelo» tem qualquer coisa a ver com o romance Rosso Malpelo de 1878 do escritor italiano Giovanni Verga?

O romance conta a história de Rosso Malpelo, um garoto ruivo que trabalha numa pedreira de areia vermelha na Sicília. Pressionado pelos preconceitos da mentalidade popular acerca das pessoas com cabelos ruivos, Roso Malpelo não encontra afeto nem mesmo junto da própria mãe.

Resposta:

A expressão não se deve ao texto mencionado, que, em verdade, é um conto, e não um romance, que faz parte de um volume intitulado em italiano Vita dei Campi, do autor siciliano Giovanni Verga (1840-1922)1.

A expressão  «ruço de mau pelo» ou «ruço de má pelo» – em Portugal, frequentemente completado com a sequência «quer casar, não tem cabelo» –, encontra paralelo noutras línguas da Europa, como é o caso do italiano, só que em referência não a gente ruça, ou seja, de cabelo loiro, mas, sim, a pessoas de cabelo ruivo. Trata-se de um dito associado a uma superstição abordada num conjunto de apontamentos publicado em 1918 na Revista Lusitana (RL):

«Quanto à aversão manifestada contra os ruivos [nos] provérbios, parece que ela se funda na crença de que Judas era ruivo – crença corrente em Portugal e que em França deu origem à locução avoir un poil de Judas, isto é, ter os cabelos ruivos.» (José Maria Adrião, "Retalhos de um Adagiário", RL, vol. XIX, p. 42)

Acrescente-se que ruço pode significar não apenas «loiro», mas também «ruivo» em alguns dialetos portugueses (por exmplo, em Trás-os-Montes e no norte da Beira Interior)2 Além disso,  a literatura portuguesa do final da Idade Média também documenta o preconceito contra os ruivos, como sucede na Crónica de D. Fernando, de Fernão Lopes (1380-1460), segundo José Maria Adrião no artigo já citado:

«Vem a propósito um caso contado por Fernão Lopes, e que revela a má conta em que já no século XIV eram tidos os ruivos: Quando Henrique II, d...

Pergunta:

Há dias, num artigo de jornal, tropecei na seguinte frase:

«Não há dia que passe sem que a corrida presidencial nos Estados Unidos nos ponha o coração aos pulos. Nuns dias agarramo-nos ao mais ligeiro sinal positivo, noutros somos realistas: a economia deve garantir a Trump o seu segundo mandato.»

A minha dúvida: «... sem que a corrida presidencial nos Estados Unidos nos ponha o coração aos pulos», ou, antes, «... sem que a corrida presidencial nos Estados Unidos NÃO nos ponha o coração aos pulos» ?

Os meu agradecimentos.

Resposta:

A frase em causa está correta, porque se pretende dizer, afinal, que «a corrida presidencial nos põe o coração aos pulos em todos os dias que se passam». Mas igualmente correta e semanticamente equivalente se revela a sequência «não há dia que passe sem que a corrida presidencial nos Estados Unidos (EU) não nos ponha o coração aos pulos», 

O significado da frase original ficará um pouco mais claro com a supressão da oração relativa «que se passe» e a substituição da oração subordinada adverbial «sem que...» por uma oração subordinada relativa:

(1) «Não há dia em que a corrida presidencial nos EU não nos ponha o coração aos pulos.»

A negação marcada por «não nos ponha o coração aos pulos» pode ser transposta como oração subordinada adverbial de sem + infinitivo ou sem que + conjuntivo:

(2) «Não há dia (que se passe) sem a corrida presidencial nos EU nos pôr o coração aos pulos.»

(3) «Não há dia (que se passe) sem que a corrida presidencial nos EU nos ponha o coração aos pulos.»

Tanto em (2) como em (3), a oração principal é negativa – «não há dia que passe» –, tal como a subordinada – «sem a corrida....» ou «sem que a corrida...». Neste caso, «[...] as duas negações anulam-se e a oração subordinada passa a designar uma situação que efetivamente aconteceu» (Gramática do Português, Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 2027).

Contudo, é também possível inserir o advérbio não na oração subordinada, sem alteração de significado:

(4) «Não há dia que passe sem que a corrida presidencial nos EU não nos ponha o coração aos pulos.»

Em (4), a segunda ocorrência de não tem caráter expletivo1, isto é, empregando terminologia gramatical mais tradicional, funci...