Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber porque usamos a mesma palavra, tempo, para nos referirmos ao tempo cronológico e ao tempo meteorológico.

Como evoluiu a língua para termos a mesma palavra para conceitos tão diferentes?

Resposta:

Trata-se de um uso que já vem do latim – tempus, temporis – e é comum às línguas românicas, embora também não seja desconhecido nas línguas célticas (ver o caso do irlandês).

Os conceitos de tempo cronológico e tempo meteorológico podem ser, afinal, bem próximos, se se pensar que ambos podem ser percebidos como «momento» ou «época» – aliás, os dois conceitos podem até convergir na expressão «estes tempos». De qualquer modo, na história das línguas indo-europeias, como é o caso do latim e das línguas que dele procedem (entre elas, o português), é frequente o uso da mesma palavra para denotar as duas categorias, como apontou Carl Darling Buck (1866-1955), no seu A Dictionary of Selected Synonyms in the Principal Indo-European Languages (The University of Chicago Press, 1949, p. 70):

«The 'weather' is most commonly expressed by words of 'time', in a few cases by those for 'air' or 'sky', while the Germanic group is cognate with words for 'wind'.» (= «O 'tempo meteorológico' é normalmente expresso por palavras de 'tempo cronológico', nalguns casos pelas de 'ar' ou 'céu', ao passo que no grupo germânico tem termo cognato das palavras para 'vento').

Pergunta:

Para a pergunta «é que», deparei com a seguinte resposta do Ciberdúvidas:

«Rodrigo de Sá Nogueira, no seu Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem (Livraria Clássica Editora, Portugal), explica esse é que (ou foi que) por imitação do francês "c'est que…". E não lhe via, já nesse tempo, qualquer deselegância gramatical . Antes pelo contrário: "Trata-se de uma expressão radicada, consagrada pelo uso, e, diga-se de passagem, de muita expressividade." À luz da gramática portuguesa, R. Sá Nogueira justifica este tipo de construção como uma frase elíptica, que dá força e realce a uma determinada ideia ou informação. No exemplo apontado, a frase seria assim: "A escola recuou na sua proposta. Porque (é que) faltam os fundos necessários." E remete-nos para o que escreveu sobre o mesmo assunto o insuspeito Vasco Botelho de Amaral. Vem no Glossário Crítico de Dificuldades do Idioma Português (Editorial Domingos Barreira, Porto, esgotadíssimo) e é a defesa mais acalorada que conheço da "espontaneidade e relevo expressivo" da partícula é que – um recurso estilístico comum, de resto, em clássicos como Viagens na Minha Terra, de Epifânio da Silva Dias (1941-1916) aponta na seguinte passagem da sua Syntaxe Histórica Portuguesa (Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1918, pp. 317/318)1:

«§ 428. a) Para realçar um sujeito ou complemento directo, assignalando-o como sendo a unica pessoa ou cousa a que o predicado se applica, pode desdobrar-se a oração em duas, por meio do verbo ser com o pronome demonstrativo o (no português archaico aquelle), seguido de uma oração relativa (e com o pronome quem equivalente a aquelle que):

o coraçom viel he aquell que faz homem sseer pera pouco (Fabulas fab. 22). A natureza a todos os homens fez eguaes; a fortuna he a que fez os altos, os baixos e os baixíssimos quaes são os servos (Vieira, IV, 323). as taças que gyravam ao redor eram as que produziam o tinir que soava fora (Herculano, Euric...

Pergunta:

Se todas as vogais nasais são fechadas, por que as palavras oxítonas/agudas terminadas em em (em que se origina um ditongo decrescente nasal fechado – ditongo fonético) são grafadas com acento agudo e não circunflexo (como também, amém, armazém, porém), excetuando-se os derivados dos verbo ter e vir na 3.ª pessoa do plural?

Resposta:

Não parece haver outra explicação que não seja a de se ter definido essa regra por se tratar de uma sequência gráfica especial, que não se comporta como as representações de nasalidade vocálica em inicial ou medial: âmbar, intercâmbio, ânfora, ignorância, êmbolo, ênfase, idêntico, ôntico, Estômbar, recôndito,

No Dicionário Houaiss, assinala-se que, entre  os dígrafos, «[se incluem] tb. am, an, em, en, im, in, on, om, um, un (que representam vogais nasais).» Trata-se, no entanto, de uma afirmação que só terá em mente os grafemas usados em posição não final na escrita contemporânea.

Não obstante, é preciso referir que, no contexto da reforma ortográfica 1911, a norma determinava que tais substantivos agudos se escrevessem com acento circunflexo. Registam-se, portanto, grafias, como alêm, armazêm e porêm no Vocabulário Ortográfico e Remissivo da Língua Portuguesa (1913), de A. R. Gonçalves Viana. Aliás, as Bases da Reforma de 1911 previam isto mesmo: «O ditongo em, quando predominante [= tónico] em polissílabos, receberá o acento circunflexo, como em armazêm, armazêns, porêm, a par de margem, porem, cuja escrita indicará a acentuação márgem, pôrem, mesmo sem ser marcada.»1

Mais tarde, com a aplicação do Acordo Ortográfico de 1945 em Portugal e a adoção do Formulário Ortográfico de 1943 no Brasil, a possibil...

Pergunta:

Já vi duas versões ligeiramente diferentes da evolução fonética de nostrum para nosso. Diferem nos fenómenos do interior da palavra. Uma considera que houve síncope do /t/ e assimilação do /r/; a outra considera que houve síncope do /r/ e assimilação do /t/.

Gostaria que me esclarecessem, por favor.

Resposta:

Só me foi possível encontrar fontes que tendem a confirmar a segunda descrição ou a convergir com ela: no latim nostrum, teria ocorrido relativamente cedo – talvez já no latim vulgar – a queda (síncope) de r, seguida da assimilação de t por s, num processo que conduziu a nosso e às formas da sua flexão.

Assim, o que o filólogo galego Manuel Ferreiro (Gramática Histórica Galega, Edicións Laiovento, 1995, p. 158)  diz sobre o galego medieval é válido para o português medieval (como se sabe, os dois idiomas confundem-se num só à medida que recuamos na história):

«Na secuencia latina -STR- parece ter habido certa tendencia á evolución -ss- ([s]) nalgún vocábulo isolado: NŎSTRU > nosso [...]. Mais seguramente xa estamos perante as formas latino-vulgares *NŎSSU [...], como [parece] indicar tamén a forma nuesso [...] do español antigo.»

Uma hipótese um tanto diferente está exposta, por exemplo, em Edwiin B. Williams, Do Latim ao Português (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2001, p. 160):

«[A] primeira pessoa do plural: nostro era usado em português arcaico somente na expressão nostro Senhor referente a Deus [...]. A forma *nossum deve ter existido em latim vulgar de certas regiões [...]. Desenvolveu na relação nos:*nossum, por analogia com a relação me:meum, tornando-se o s longo para p...

Pergunta:

O meu falecido pai utilizava um termo para descrever quando por um rego de água estava a verter bastante. Este termo era «deitar de enxotão».

Pergunto se esta palavra tem alguma razão de ser e qual a origem?

Obrigado.

Resposta:

A expressão é relativamente transparente, porque deriva do verbo enxotar, que significa «expulsar com agressividade». Sendo assim, percebe-se que «deitar de enxotão» quererá dizer «fazer sair com força (no caso, água)».

Observe-se, no entanto, que não foi aqui possível encontrar fontes que registem a expressão e lhe atribuam uso regional.