Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Sou estudante de Línguas, Literaturas e Culturas e, numa disciplina da área da linguística, surgiu a questão de como é que se poderá explicar diacronicamente a possibilidade da mesóclise.

Assim, qual é a história da mesóclise, desde o latim clássico até ao português contemporâneo?

Resposta:

A história da mesóclise1 está ligada à história da formação do futuro simples do indicativo em português. Este tempo verbal tem origem numa perífrase verbal do latim vulgar. Por exemplo, amarei representa o resultado de amare habeo.

Acontece que a forma em apreço manteve até determinada época a autonomia dos seus elementos constituintes, a ponto de entre estes poder inserir-se um pronome pessoal complemento: assim, de amare illum habeo, a evolução para o galego-português foi no sentido de possibilitar formas como amá-lo-ei, que historicamente é equivalente a «hei de amá-lo», mas de acordo com uma ordem sintática diferente.

1 A mesóclise consiste na «colocação do pronome oblíquo átono [_pronome pessoal átono] entre o radical e a desinência das formas verbais do futuro do presente e do futuro do pretérito (p.ex.: vê-lo-ei, contar-me-ás)» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).

 

[N. E. (20/03/2020) – Acrescente-se as considerações do linguista galego Manuel Ferreiro, na sua Gramática Histórica Galega (Edicións Laiovento, 1996, p. 298): «No galego-português medieval, a natureza analítica deste tempo (e mais do Pospretérito) estaba plenamente vixente, sendo posíbel a separación da forma de infinitivo da desinencia por meio dun pronome persoal (tmese: amá-lo-ei, amar-vos-ei, etc. , a carón de amarei-o, amarei-vos, etc. Esta construcción desapareceu en galego moderno, manténdose ainda no portugués literario.» O termo Pospretéritoé equivalente aos termos condicional (usado em Portugal) e futuro do pretérito (Brasil.]

 

Pergunta:

Qual o correto?

«Hoje é domingo, pé de cachimbo«, ou «Hoje é domingo, pede cachimbo»?

Resposta:

Não é fácil classificar como correta ou incorreta uma parlenda (ou lengalenga) tradicional – brasileira ou de outro lugar. O mesmo se diga acerca dos versos que a constituem.

A forma mais antiga ou mais enraizada parece ser «hoje é domingo, pé de cachimbo». Contudo, há variantes como «pede cachimbo», alternativa esta que será uma forma de racionalizar um verso provavelmente absurdo na origem, talvez mais decorrente das necessidades da rima (cf. Cibelle Correa Béliche Alves et al., "Língua e cultura do Maranhão: tico tico sirilico... o que é, o que é – parlendas e adivinhas maranhenses das obras de Domingos Vieira Filho", in Anais do II Congresso Nacional de Literatura - II CONALI, 2014, pp. 391-404).

Trancreve-se a seguir uma das versões desta parlenda (sobretudo) brasileira: «Amanhã é domingo,/ Pé de cachimbo;/ A areia fina/ Deu no sino,/ O sino é de ouro,/ Deu na torre,/ A torre é de prata/Deu na mata;/A mata é valente,/ Deu no tenente,/ O tenente é mofino,/ Deu no menino;/ O menino é tolo/ Deu um tapa-olho.» (idem, p. 396)

Pergunta:

Tenho em mãos um texto em inglês para traduzir onde aparecem uma lista de termos como «racism, sexism, classism, ageism...»

Como devo traduzir classism? Será correto utilizar hoje em dia o termo "classismo", ou devo empregar «discriminação de classes»?

Já existe na língua portuguesa o termo "classismo"? O dicionário Priberam diz que sim, mas gostava de saber a vossa opinião.

Grata.

Resposta:

Nada impede a formação e o uso de classismo,  que, além de constituir sinónimo (muito pouco frequente) de classicismo1, é corrente como quase sinónimo de elitismo.

Dado os dicionários registarem classista, nome e adjetivo que, entre outras aceções, pode significar «(pessoa) que venera ou defende determinadas classes, em especial as classes favorecidas» e «(pessoa) que defende as diferenças de classe» (dicionário da Academias das Ciências de Lisboa), é legítimo supor um nome correspondente, classismo, tal como elitista pressupõe elitismo.

Note-se que não é apenas o dicionário Priberam que regista os vocábulos classista e classismo; também o dicionário da Porto Editora, na Infopédia, os acolhe.

Finalmente, registe-se a tradução dos outros termos ingleses enumerados pela consulente: racismo, sexismo, idadismo.

1 Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

Pergunta:

Como tenho visto escrito de várias formas – inclusive, aqui no Ciberdúvidas –, pergunto: COVID 19, COVID –19, Covid 19 ou Covid–19?

Muito obrigado pelo esclarecimento.

Resposta:

Organização Mundial de Saúde (OMS) informa que os nomes oficiais são os seguintes: COVID-19, para referir a doença do coronavírus; e SARS-CoV-2, para o novo ou "segundo" coronavírus da síndrome respiratória aguda severa.

Sobre estas denominações, convém assinalar que as siglas, acrónimos e denominações associadas referentes à doença e ao vírus causador provêm todas do inglês e têm aceitação e uso internacionais. Assim:

1. Ao vírus causador da doença, o Comité Internacional para a Taxonomia dos Vírus (International Committee on Taxonomy of Viruses – ICTV) atribuiu em 11/02/20201 o nome de «severe acute respiratory syndrome coronavirus 2», literalmente «coronavírus de síndrome respiratória aguda severa 2», cuja abreviação é SARS-CoV-22.

2. A OMS anunciou em 11/02/2020 que a doença passaria a ser designada pelo acrónimo COVID-19, que representa a expressão inglesa «coronavirus disease». Este acrónimo é formado pelos elementos truncados CO- e -VI-, sílabas extraídas do inglês coronavirus, a que se junta a inicial D do vocábulo também inglês disease («doença»). O algarismo final, separado por um hífen, indica o ano em que o vírus foi identificado.

Observe-se que, no momento em que se elabora esta resposta,  há ainda em Portugal, mesmo em documentos disponíveis em linha, certas oscilações no uso, as quais pod...

Pergunta:

Sempre conheci as expressões «raios te partam», «raios o partam», «raios me partam», «raios partam»1 isto e aquilo…

Mas nunca vi registado em nenhum dicionário, nem mesmo como uma corruptela, o vocábulo “raisparta”. No entanto, numa pesquisa que fiz no Google, este vocábulo aparece em barda2. Como poderemos classificá-lo?

Gostava de ter um esclarecimento e/ou uma opinião da vossa parte.

P. S.: Poderíamos incluir outra forma desta expressão que também se ouve: “raistaparta”.

 

1 No Ciberdúvidas, "Raios te partam".

2 “Raisparta” e “rais parta” – alguns exemplos respigados no Google:

• «O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora grafa — rais parta — «moto quatro» – Linguagista, 20/04/2014

• «As séries e os erros... raisparta!» – A Marquesa de Marvila,  24/05/2019

• «Emigrantes de volta: ″Raisparta, não se poderiam ter...» – Diário de Notícias, 02/08/2018

• «Nunca sei, rais parta os duplos particípios passados!» – a SARIP em WordPress, 26/07/2009

• «Rais parta esta gente que só está bem com o mal dos outros» – De repente já nos trinta, 30/12/2016

• «Dei um salto e sai-me este grande palavrão: "Raisparta!"» – ncultura, 12/04/2019

• «raispartam manhãs cinzentachuvosas como a de hoje» – Dicionário de Expressões Populares Portuguesas),  já se dá conta de haver um processo de alteração ou deturpação fonética ou sintática, quando se escreve «"rais" te partam» (raios passa a "rais") e «raios te "parta" (o verbo não concorda com o sujeito), das quais parecem proceder as formas aglutinadas (ou amalgamadas) "rasparta" ou "raisparta", usadas como interjeição.

Trata-se, portanto, de um processo que ainda não está concluído, porque muitos falantes parecem ser capazes de reconhecer  a frase primitiva. Por outro lado, o resultado é uma palavra que funciona como interjeição, passando por alterações que encontram paralelo na história de outras palavras como a conjunção embora (< em boa hora) ou o advérbio sobretudo (< sobre tudo), que se gramaticalizaram1.

No caso de "raistaparta", variante da referida amálgama, ocorre também a forma "ta", cuja vogal permite apoiar melhor ou tornar mais audível o "t". Com efeito, "raisteparta" soará "raistparta", numa prolação que pode confundir-se com "raisparta". Este processo de substituição de e (ou outra vogal) por um a reduzido em sílaba átona ocorre noutros casos: "radondo", por redondo, "granda", por grande.

 

N. E. – Fala-se de erosão, quando se descrevem casos como estes, em que ocorrem a redu...