Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual o correto: «associações membro» ou «associações membros»?

Pela regra de países membros achei que a segunda era correta, mas tenho duvida.

Obrigada pelo esclarecimento.

Resposta:

Em princípio, hifeniza-se e pluraliza como Estado-membro e Estado-nação. Assim, tal como se diz e escreve Estados-membros e Estados-nações, também se empregará associações-membros.

Entretanto, convém dizer que o uso de membro parece evoluir no sentido de ganhar cada vez mais uma função adjetival, aproximando-se de palavras como fantasma ou mãe, que, pelo menos, na lexicográfia brasileira (cf. Dicionário Houaiss) são classificados como determinantes específicos1, quando modificam um nome, razão por que são hifenizados (p. ex., conta-fantasma, casa-mãe). Por outras palavras, membro tem atualmente um comportamento que o aproxima de sócio, associado ou participante, que os dicionários registam quer como nomes quer como adjetivos. Nesta perspetiva, não será necessário estritamente necessário membro ter hífen, ainda que se impusesse a flexão no plural de modo a concordar com o nome que modifica: Estado-membro/Estados-membros ~ associação-membro/associações-membros.

1 Mesmo na lexicografia portuguesa – cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa – se regista a função adjetival que o nome fantasma pode ter. Ver também

Pergunta:

Bálcãs x Balcãs. Por que é que, enquanto em Portugal se usa a forma oxítona, no Brasil se usa a forma paroxítona?

Terá sido a escolha brasileira influenciada pela língua inglesa?

Resposta:

Ao que parece, a acentuação corrente em Portugal até há cerca de 70 anos era como a brasileira, isto é, paroxítona.Isto mesmo se infere do que um gramático normativista português, Vasco Botelho de Amaral, observou no seu Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (1958, p. 476):

«Bálcãs. Em português está vulgarizada a pronúncia com tonicidade no a. A palavra é turca e significa "montanha". Balkans é escrita bárbara.»1

Não é clara razão a que se deve esta acentuação, mas, não sendo plausível que o nome provenha diretamente do turco, do búlgaro ou de outra língua balcânica e pensando em línguas intermediárias, avulta como possível influência o inglês Balkans, com tónica na primeira sílaba (transcrição fonética: /ˈbɔːlkənz/). No Brasil, a grafia Bálcãs é corrente, o que indica que esta pronúncia se manteve (cf. Dicionário Houaiss s. v. balcânico, balcanizar e balcano-), muito embora Balcãs seja a única forma registada pelo Vocabulário Onomástico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras2. No português de Portugal, no entanto, acabou por se impor a forma Balcãs, com tónica na sílaba -cãs (cf. Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves),  homóloga das sílabas tónicas do castelhano Balcanes e do italiano Bal...

Pergunta:

Primeiramente agradeço de antecipado a todos vocês deste sítio e desejo saúde para todos nós.

Aqui trago um trecho da Constituição brasileira que me causou confusão:

«XXXI – a sucessão de bens de estrangeiros situados no País será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do "de cujus".»

A que o texto se refere que está situado no país? Os bens ou o estrangeiro? Há aqui ambiguidade? Se há como ficaria a reescrita para tirar suposta ambiguidade?

Resposta:

Não se vê claramente na frase uma situação de ambiguidade impeditiva da interpretação da passagem enviada. Com efeito, o texto refere-se à sucessão ou transmissão de bens de cidadãos estrangeiros já falecidos.

Acrescente-se que a locução latina de cujus significa «falecido cujos bens estão em inventário», segundo o Dicionário Houaiss. Sobre a sua origem, observa a mesma fonte: «redução da fórmula jurídica latina [Is] de cujus [successione agitur]; is nominativo masculino singular do pronome demonstrativo is, ea, id "aquele", preposição de de ablativo "a respeito de, sobre", cujus genitivo singular do pronome relativo qui, quae, quod "que, quem, o qual", successione ablativo singular de successio, -onis 'sucessão', agitur, 3.ª pessoa do singular do presente do indicativo passivo de ago, agis, egi, actum, agere "tratar, referir, falar".»

Agradecemos e retribuímos os votos de saúde.

Pergunta:

Durante a tradução dum texto deparei-me com a frase «enquanto crianças, não tivemos opção.» e fiquei na dúvida se o correcto não seria mais «Em crianças, não tivemos opção».No entanto, esta segunda não me soa tão bem como a primeira.

Alterar para «Enquanto éramos crianças (...)», parece-me um pouco rebuscado. Podem esclarecer, por favor?

Um grande obrigado pelo vosso excelente trabalho!

Resposta:

É uma construção possível e correta – uma elipse de «enquanto fomos/éramos crianças» –, embora a que tenha mais tradição seja efetivamente «em criança»/«em crianças».

Enquanto é geralmente uma conjunção subordinativa temporal («enquanto estive no campo, a minha mãe tratou-me das crianças», dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). É também corrente a introduzir uma contraposição: «Ela leva uma vida regalada, enquanto eu me farto de trabalhar», idem, ibidem).

Contudo, enquanto ocorre também antes de substantivo, para marcar «[uma perspetiva limitadora sob a qual se encara alguém ou alguma coisa»: «ele, enquanto escritor, não tem grande mérito»; cf. idem, ibidem)1. O caso de «enquanto crianças» corresponderá a este segundo caso, muito embora mantenha o valor temporal associado ao uso oracional da conjunção, podendo a expressão ser até parafraseada por uma oração – «enquanto [fomos/éramos] crianças» –, o que permite sugerir que a estrutura mais sintética constitui uma elipse.

Seja como for, trata-se de uma construção que encontra exemplos literários:

(1) «Lembrava-se do seu isolamento, enquanto criança» [Abel Botelho (1854-1917), Fatal Dilema, 1917 in Corpus do Português, de Mark Davies].

Quanto a «em criança», é outra construção de valor temporal, que também acha abonação literária:

(2) «Caramba! Esses analfabetos, esses mastigadores de lugares-comuns, esses tomadores de chá requentado e que lhes sabe a coisa fina, de não saberem o que seja chá, de em crianças nunca o cheirarem?» [Tomaz de Figueiredo (1902-1970), Noite das Oliveira...

Pergunta:

Muitos a pronunciam "Erliquia", mas entendo que o nome científico provém do cientista que a descreveu, Paul Erlich (1854-1915), e, portanto, deveria ser pronunciado como "Erlichia".

Procede o meu entendimento?

Obrigado.

Resposta:

Por Ehrlichia canis entende-se o agente causador da vulgarmente chamada «febre da carraça».

Não é forçoso que o nome científico Ehrlichia canis ("Ehrlichia" derivada do apelido de Paul Ehrlich) seja pronunciado "erlíquia" – é possível pronunciar "erlíchia".

Note-se, entretanto, que o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras regista ehrlichiose como palavra derivada, embora em textos especializados ocorra igualmente erliquiose, forma que confirma a possibilidade da pronúncia "erlíquia".

Recorde-se também que os derivados de nomes estrangeiros mantêm geralmente as sequências gráficas do nome original, mesmo que estas não façam parte da tradição ortográfica do português. Com efeito, tal como se mantém o w de Wagner em wagneriano, assim ehrlichiose conserva igualmente a grafia do nome do cientista alemão, Ehrlich.