Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
433K

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Em português de Portugal, devemos escrever «estar de quarentena» em vez de «estar em quarentena»? Qual dos dois o mais correto?

Antecipadamente grata pela vossa resposta.

Resposta:

Ambas as construções estão corretas, mas pode dizer-se que a forma mais enraizada no uso é a que exibe a preposição de – «estar de quarentena» –, tal como acontece com outros casos em que figura a mesma preposição: «estar de licença», «estar de férias», «estar de cama».

Acrescente-se, aliás, que «de quarentena» é a forma que figura como subentrada de quarentena em dicionários como o da Porto Editora (em linha na Infopédia), o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, Dicionário Houaiss e o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa. Neste último, por exemplo, regista-se «de quarentena», e não «em quarentena», como locução adverbial com o significado de «em observação, à espera do desenrolar de uma situação», a que se juntam ainda as seguintes expressões:

«estar/ficar de quarentena. 1. Ficarem, viajantes ou mercadorias, isolados por quarenta dias, devido a suspeita de possível contágio de doenças oriundas de outros lugares. 2. Como medida de precaução ficar sob reserva.»1

«pôr de quarentena, pôr em observação, à espera, à espera de confirmação ou do desmentido de alguma coisa.»

Assinale-se, mesmo assim, que não está errado dizer/escrever «em quarentena», atendendo a que também ocorre «estar em férias» ou «estar em isolamento». Tendo em conta que «estar de quarentena» pode ser concebido como uma forma de «estar em isolamento», aceita-se, portanto, «estar em quarentena».

 

1 Anote-se que, no contexto da pandemia de coronavírus, se usa quarentena para referir um que período de isolamento que pode não chegar a 40 dias (ler

Pergunta:

Tendo em conta que o verbo testar é transitivo directo, isso não faz de «positivo» em «testar positivo"»o complemento directo?

Não me parece fazer sentido. Testa-se a pessoa, não o resultado, diria eu. Soa-me a um decalque do inglês "test positive for", mas encontram-se tantos exemplos na imprensa, que fico na dúvida.

Ficaria muito agradecido se pudessem clarificar esta questão.

 

O consulente escreve segundo a norma ortográfica de 1945.

Resposta:

A construção parece ser uma transposição do inglês: «he tested positive for steroids during the race» (= «ele teve resultado positivo no exame/análise (feito/feita) aos esteroides durante a corrida» – cf. Lexico.com). Este verbo é geralmente transitivo em inglês, mas também pode ele ocorrer como intransitivo com um "complemento" (conforme a classificação da fonte consulta; cf. idem, ibidem): «[no object, with complement] Produce a specified result in a medical test, especially a drugs test or AIDS test» (tradução livre: «[sem objeto, com complemento] Apresentar um dado resultado num exame médico, em especial, na deteção de consumo de drogas ou num exame à sida.»)

Trata-se de uma construção típica da língua inglesa e, à partida, não teria adaptação ao português. Contudo, a verdade é que, talvez, pela sua capacidade de síntese, este uso de testar, que é discutível, tem-se popularizado em português, tanto no Brasil como noutros países de língua portuguesa, incluindo Portugal.

Em português, não parece claro o processamento desta construção, o que talvez seja razão para, numa análise sintática e semântica, se aceitar que o verbo testar é tratado como o verbo abrir, que, além de transitivo («ele abriu a porta»), também pode ocorrer intransitivamente («a porta abriu/abriu-se»)1; além disso, positivo é interpretável adverbialmente, como «positivamente» (não se trata, portanto, de um complemento), ainda que o uso adverbial de adjetivos seja condenado por vários autores prescritivistas.

Note-se que, em português, entre as construções compatíveis com a ideia de «fazer um exame médico cujo resultado se revela positivo/negativo», se contam «alguém ter resultado positivo no exame ao coronavírus» (ou no Brasil «para o coronavírus», ou «o exame a [nome da doença] de X [p...

Pergunta:

Tenho lido em textos que me são enviados para revisão a locução prepositiva «de acordo com» grafada da seguinte forma: «de acordo o», «de acordo a».

Na primeira vez que vi essa construção, pensei imediatamente que o autor teria escrito a locução e deixado inadvertidamente de inserir a preposição com. No entanto, o autor continuou a usar a mesma locução em outros trechos do texto, e depois eu a encontrei também em outros textos, o que é suficiente para que eu comece a pesquisar em busca de encontrar a fonte desse tipo de construção ou alguma coisa que justifique o seu emprego.

Gostaria de saber se essa regência existe e deve ser acatada na língua culta.

Obrigada.

Resposta:

A forma correta da locução prepositiva em questão é «de acordo com».

Embora «de acordo com» não tenha registado como subentrada de acordo em fontes dicionarísticas brasileiras (pelo menos, nas consultadas para elaboração desta resposta), pode confirmar-se que a locução integra a preposição com, por exemplo, nas definições de segundo e conforme, quando estas palavras ocorrem como preposições sinónimas (sublinhado nosso):

(1) «segundo2  se•gun•do prep De acordo com; conforme, consoante» (Dicionário Michaelis)

O mesmo acontece, quando se procura conforme, que pode empregar-se como preposição:

(2) «conforme [...] preposição de acordo com; segundo, consoante [...]» (Dicionário Houaiss; ver também Dicionário UNESP do Português Contemporâneo, 2003)

Mesmo assim, assinale-se que em dicionários portugueses a locução figura como subentrada de acordo,  como se verifica no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, que dá abonações:

«de acordo com alguma coisa ou alguém, loc. prep., em consonância, em conformidade com; segundo alguma coisa ou alguém. "Não que numa viagem ou outra não houvesse problemas sérios, ou pessoas aborrecidas. Mas não eram os da terra. Eram outros, e tinham de ser resolvidos de acordo com as leis do mar." (J. de Sena, Sinais de Fogo, p. 448). "Apesar disso e como 'medida cautelar' – de acordo com [o Secretário de Estado] – o Ministério da Agricultura 'está a fazer um levantamento dos efeitos da seca" (Expresso, 14.3.1992).»

Também os dicion...

Pergunta:

Gostaria de saber por que a palavra poesia deve ser grafada com s e não com z.

Obrigado.

Resposta:

Por razões históricas (etimológicas), poesia escreve-se com s, visto que provém de uma palavra latina que já apresentava essa consoante, conforme se anota em várias fontes dicionarísticas, por exemplo, no Dicionário Houaiss:

«lat. poēsis, is "poesia, obra poética, obra em verso" < gr. poíēsis, eōs "criação; fabricação, confecção; obra poética, poema, poesia"; segundo José Pedro Machado [Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa], por intermédio do italiano poesia (1321) "arte e técnica de exprimir em verso uma determinada visão de mundo"»

Pergunta:

Há pouco tempo surgiu a dúvida entre «bago de arroz» ou «grão de arroz». Qual é a forma correta?

Sempre disse «bago de arroz», até existe uma loiça chinesa com essa designação. Soube que os nortenhos dizem «grão de arroz».

Podemos usar as duas?

Muito obrigada!

Resposta:

Podem usar-se as duas formas, independentemente de uma poder constituir forma regional.

Um uso regional não é, por definição, um erro. Mas, no caso em apreço, é duvidoso que «grão de arroz» seja expressão característica do norte de Portugal. Na verdade, «grão de arroz» ocorre, por exemplo, num conhecido fado de 1952, "Grão de arroz", cantado por Amália Rodrigues, com música e letra de José Belo Marques (1898-1987):

(1) «O meu amor é pequenino como um grão de arroz,/É tão discreto que ninguém sabe onde mora.»

Convém registar que Belo Marques não era natural do norte de Portugal, mas, sim, de Leiria, ou seja, do centro do país. Pode ainda supor-se algum contacto mais prolongado do compositor português com os falares setentrionais portugueses, mas, sobre tal possibildiade, são omissas as fontes consultadas a respeito da biografia de Belo Marques.

Talvez a pergunta seja feita na perspetiva de alguém que vive em Lisboa ou mais a sul, condição que pode explicar que se considere Leiria já no norte, muito embora a geografia o desminta. Seja como for, não é certo que «grão de arroz» seja uma expressão nortenha, parecendo muito mais uma alternativa a «bago de arroz».

Observe-se, por último que bago é um nome masculino formado com base em baga, palavra proveniente do latim bacca, ae «fruto miúdo; bola; tudo o que tem ou lembra a forma de uma baga» (cf. Dicionário Houaiss).