Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Campanha pertence à família de palavras de campo?

Resposta:

A palavra campanha, que, entre outras aceções, significa «série de operações militares» e, figuradamente, «esforços ou meios para atingir um objetivo»1 na língua corrente, pertence à mesma família de palavras que campo, uma vez que, com este vocábulo, partilha a raiz e o radical camp-.

Tendo, porém, em conta que uma família de palavras se define como «[um c]onjunto das palavras formadas por derivação ou composição a partir de um radical comum» (Dicionário Terminológico), observa-se que campanha , além de parecer denotar uma noção bastante diferente, não é um derivado de campo no contexto da língua portuguesa contemporânea. Com efeito, a relação formal ainda hoje percetível entre campanha e campo deve-se a razões históricas, porque campanha representa a evolução de uma palavra latina que era da família de campus, i, forma também latina donde procede o português campo. Sobre esta relação etimológica, pode ler-se no Dicionário Houaiss:

«[do] latim tardio campanĭa "os campos, a planície"; segundo José Pedro Machado, é o plural neutro tomado substantivamente do adjetivo campāneus, derivado de campus, ou extensão de Campania, nome da fértil planície em volta de Nápoles; o sentido militar só aparece em francês no séc. XVII e no mesmo século, no sentido de "planície".»2

Por outras palavras, a palavra campanha tem usos que mantêm uma relação conceptual próxima com campo, atestando-se, por exemplo, como sinónimo de planície (um regionalismo do Rio Grande do Sul, segundo Dicionário Houaiss). Contudo, na linguagem mais corrente, o significado de campanha documenta  um p...

Pergunta:

Agora que a Holanda se chama Países Baixos, como devemos denominar os seus habitantes?

Resposta:

Os cidadãos dos Países Baixos denominam-se Neerlandeses1, nome que, de resto, já se usava, pelo menos, em âmbitos oficiais e formais (cf. Código de Redação Interinstitucional para uso do português na União Europeia). Contudo, informalmente, continua a empregar-se Holandeses.

decisão de os Países Baixos passarem a ser assim chamados oficialmente deve-se ao facto de o topónimo Holanda se aplicar apenas a duas regiões do país (Holanda do Norte e Holanda do Sul). Outro nome que é possível dar a este país é Neerlândia, de escassísimo uso [cf. registo desta forma no Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves, e em Topónimos e Gentílicos (1941, p. 69), de I. Xavier Fernandes)].

Acrescente-se que neerlandês, adjetivo pátrio também usado como nome, é forma transmitida pelo francês, segundo o Dicionário Houaiss: «neerlandês [do] francês néerlandais [...] 'idem' < [do] topónimo francês Néerlande, francização de Nederland, nome neerlandês dos Países Baixos, de neder "baixo" e land "país, região".»

1 Em Portugal, quando referidos ao conjunto dos cidadãos de um país ou a todo um g...

Pergunta:

Em inglês, há a palavra trapper, e, em espanhol, há a palavra tramposo (ambas seriam, em português, "armadilheiro", por de certo).

Armadilha em inglês é trap, e, em espanhol, é trampa. Qual será então o motivo de não haver a palavra "armadilheiro" em português? Embora eu já a tenha visto em certas traduções de histórias em quadrinhos, animações, videogames e jogos de cartas colecionáveis... mas, oficialmente, não existe em nosso idioma!

Resposta:

Os dados apresentados sobre o inglês e o espanhol estão longe de constituírem uma regra das línguas vizinhas. Os idiomas são também produtos histórico-sociais, e, portanto, raramente é útil avaliar a capacidade expressiva de um a partir dos outros sem ter em conta um mínimo de contextualização cultural. Por outro lado, é preciso considerar que as línguas também refletem muito o que são necessidades de expressão coletivas.

O português poderia ter "armadilheiro", que potencialmente existe, mas não se usa. Em seu lugar tem trapaceiro, de trapaça, «armadilha moral, desonestidade», e, para quem faz armadilhas para caçar animais, armador (cf. Dicionário Houaiss1). Por outras palavras, em português, o termo que geralmente denota a pessoa que cria armadilhas psicológicas morais não deriva do nome armadilha, mas, sim, de outras, como trapaça.

A distribuição desta área de significação por unidades lexicais com diferente etimologia e derivação não constitui uma anomalia. Para mais, verifica-se que, mesmo em espanhol, a noção de «aquele faz armadilhas (físicas ou morais)» também se encontra marcada separadamente, pelo menos, por duas palavras que têm a mesma base de derivação mas são diferentemente sufixadas: por um lado, regista-se trampero («o que faz armadilhas») e, por outro, como adjetivo, tramposo («embusteiro, aldrabão, batoteiro») – cf. dicionário da Real Academia Espanhola.

Assinale-se, em todo o caso, que o inglês trapper não é o mesmo que tramposo, cujo significado anda próximo de trapaceiro, batoteiro ou aldrabão. Mais perto do sentido do t...

Pergunta:

Na região balcânica da Europa oriental, há um país cujo nome é Bósnia e Herzegovina. Bósnia” e Herzegovina são, cada uma delas, regiões integrantes diferentes desse país.

A dúvida é a seguinte: como me referir a ele? Deverei dizer «visitei a Bósnia e a Herzegovina»? Ou então «visitei a Bósnia e Herzegovina»? Ou ainda «visitei Bósnia e Herzegovina»? O mais comum parece ser que se use a segunda forma, justamente a que me parece menos preferível, já que nela se usa um artigo definido no singular para um nome que, na verdade, tem duas partes.

Vale lembrar, ademais, que em Portugal parece existir a forma hifenizada: Bósnia-Herzegovina. Nesse caso, o mais correto parece ser que não se use artigo algum, ou seja, que se diga «visitei Bósnia e Herzegovina».

Que é que me dizem?

Resposta:

Para começar, observe-se que o nome próprio em questão se faz acompanhar de artigo definido: «a Bósnia e Herzegovina», ou «a Bósnia-Herzegovina»1. Também as duas principais regiões deste país balcânico têm sempre associado o artigo definido: «Conheço a Bósnia, mas nunca visitei a Herzegovina

Quanto às formas do nome do país em causa, pode este ter todas as mencionadas na pergunta: 

Bósnia e Herzegovina – Cf. Portal das Comunidades (Portugal) e Portal Consular (Brasil);

Bósnia-Herzegovina – Cf. Código de Redação para o português na União da Europa;

– informalmente, pelo menos em Portugal, emprega-se simplesmente Bósnia (com artigo definido): «estive na Bósnia».

Sobre o uso de artigo definido com Herzegovina, não é este necessário quando se refere globalmente o país: «estive na Bósnia e Herzegovina». Se se empregar a forma hifenizada, usa-se só artigo definido correspondente a Bósnia: «estive na Bósnia-Herzegovina».

1 Note-se que no nome de uma das unidades políticas deste país ocorre o artigo definido: Federação da Bósnia-Herzegovina (cf.

Pergunta:

Em tempos de pandemia do coronavírus, espalha-se rapidamente na imprensa e redes sociais brasileiras as locuções concorrentes "álcool em gel" e "álcool gel". Qual das duas é a correta?

Além disso, seria possível a palavra composta "álcool-gel"?

Agradeço-lhes de antemão a atenção dispensada e rendo-lhes voto de saúde!

Resposta:

O tópico não é inequívoco, ou seja, não tem uma única solução.

A expressão «álcool em gel» está correta sem sombra de dúvida. O seu plural é «álcoois em gel».

Quanto a «álcool gel», não sendo obrigatória a hifenização, esta seria adequada, já que se trata da associação de dois substantivos: «álcool-gel».

O plural deste composto pode ser duplo, porque gel tem dois plurais, géis e geles:

(i) álcoois-gel = um tipo de álcool

(ii) álcoois-geis ou álcoois-geles = um produto que é ao mesmo tempo álcool e gel.

Como, neste caso, se trata de álcool e da forma como se apresenta –é álcool em gel – a forma de plural indicada em (1) parece a mais congruente com a realidade em referência.

Observe-se ainda que gel é uma palavra que tem origem no elemento de composição com a mesma forma:

«pospositivo, depreendido de gelatina (francês gélatine, italiano gelatina, donde o português), introduzido em 1864 por [Thomas] Graham para exprimir o estado gelatinoso de um coloide, por oposição a[o elemento] -sol [...], depreendido de solução, o que lhe permitiu constituir 'termos de formação irregular', a saber, hydrosol (hidrossol) e hydrogel (hidrogel), designando o último 'hidrato gelatinoso, de ácido silícico'; em português, a par do anteriormente citado, ocorre em: aerogel, argel, coagel, xerogel; notar também. que gel