Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Antes de nada gostaria de dar os parabéns e agradecer a existência desta página maravilhosa das Ciberdúvidas. Eu moro na Galiza e falo galego, mas no seu momento escolhim para a minha língua a opção ortográfica galego-portuguesa e por isso não é estranho que gaste as horas lendo aqui.

Em geral as palavras nas duas beiras do Minho são iguais ou muito parecidas. Mas às vezes alguma delas só está num dos territórios... O caso é que reparei hai pouco que no galego mais enxebre usamos a palavra dedas para falarmos dos dedos dos pés, mas não achei esta forma nos dicionários portugueses.

Gostaria de saber se esta forma é conhecida fora da Galiza, na língua portuguesa, bem como forma dialectal ou histórica ou se consta no registo popular. É uma palavra curiosa, também não sei bem a origem dela, se tem paralelismos noutras línguas românicas ou se parte duma analogia...

Obrigado e saudações desde o confinamento aqui no norte do norte.

 

N. E. (24/04/2020) – Mantiveram-se a morfologia (hai, escolhim), as palavras (enxebre = «puro, autêntico») e a fraseologia (no seu momento = «a certa altura») galegas, incluindo a construção «desde o confinamento», que, em português, não se recomenda.

Resposta:

Com agradecimentos pelas palavras iniciais do consulente, é também com apreço que se regista aqui a sua dedicação ao galego e ao português.

Nas fontes consultadas para elaboração desta resposta, não foi possível achar registo do uso de deda, «dedo do pé», em Portugal, nem mesmo em âmbitos regionais. Trata-se muito provavelmente de uma criação exclusivamente galega, que resulta de uma derivação de dedo, num processo que se apoia no contraste de género morfológico entre os índices temáticos -o e -a em pares como carvalho/carvalha, cesto/cesta, jarro/jarra, manto/manta, rio/ria, etc.

Sobre este tipo de pares, pode ler-se na Moderna Gramática Portuguesa (Editora Lucerna, 2003, p. 132), de Evanildo Bechara:

«[...] a oposição masculino – feminino faz alusão a outros aspetos da realidade, diferentes da diversidade de sexo, e serve para distinguir os objetos substantivos por certas qualidades semânticas, pelas quais o masculino é uma forma geral, não-marcada semanticamente, enquanto o feminino expressa uma especialização qualquer

barco / barca (= barco grande)

jarro / jarra (um tipo especial de jarro)

lobo / loba (a fêmea do animal chamado lobo)

Esta aplicação semântica faz dos pares barco / barca e restantes da série acima não serem consideradas primariamente formas de uma flexão, mas palavras diferentes marcadas pelo processo de derivação. Esta função semântica está fora do domínio d...

Pergunta:

Quando quero me referir à maneira de pagar alguma coisa, qual das frases abaixo está correta?

1) Pagar à prestação.

2) Pagar a prestações.

Resposta:

As duas formas estão corretas e usam-se no Brasil. Em Portugal, prefere-se «a prestações», que faz parte da locução «pagar a prestações».

Os dicionários brasileiros consultados1 registam as duas locuções, «à prestação» e «às prestações», e ainda uma terceira  «a prestação», sem acento grave (ou seja, a crase). Os dicionários elaborados em Portugal2 só registam «a prestações»3.

 

1 Foram consultados o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o Dicionário UNESP do Português Contemporâneo e o Michaelis – Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa.

2 Consultaram-se o Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa, o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa e o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa.

3 N. E. (atualização em 25/04/2020) – Com a preposição a são estas as formas que a locução tem, com o significado de «em parcelas, faseado», mas também é possível ocorrer a preposição em, conforme atesta o registo de «em prestações» nas fontes consultadas.

Pergunta:

Já se falou aqui do uso do advérbio samicas, usado por Gil Vicente, com o sentido de «talvez», «porventura» ou «quiçá».

Agora encontrei em Sucessos de Portugal, Avisos do Céu, de Luís de Torres de Lima (1.ª ed. Lisboa, 1630, 2.ª ed. Coimbra, 1654), o seguinte trecho (ortografia actualizada):

«E com ouvirem estas lamentações acabaram de crer os que estavam fora que aquele era el-Rei ou a alma de Samicas em seu lugar.» (O contexto é o aparecimento na Ericeira de um falso rei D. Sebastião).

Samicas é aqui um nome cujo significado me escapa.

No Vocabulário de Bluteau (1638-1734), encontro, além do advérbio samicas, sinónimo arcaico de porventura, isto: «SAMICAS, chama o vulgo ao homem coitado, pobre de espírito, etc.»

Tenho dúvidas que tenha sido com este sentido que Torres de Lima usou o termo.

Resposta:

O advérbio samicas, que geralmente significa «talvez» e já no século XVI era tido por vulgar e rústico, foi também usado como nome, para designar um homem tido por insignificante, como, aliás, confirma o registo da palavra no Vocabulário Portuguez e Latino (publicado entre 1712 e 1728), que o consulente menciona. Mas dicionários muito mais recentes também acolhem este arcaísmo: o Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa e o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa1 classificam samicas também como vocábulo arcaico e/ou popular equivalente a «maricas, homem fraco ou efeminado», registo que já reflete uma extensão semântica talvez mais tardia.

Do contexto em apreço, pertencente ao relato de um dos casos ocorridos no século XVII, em que vários impostores diziam ser D. Sebastião, pode supor-se que o sujeito do enunciado insinua que quem se lamentava não era o rei, mas outra pessoa. Não parecendo incompatível com o significado de «pobre de espírito» (nem com a de «maricas»2), esta ocorrência de samicas pode também entender-se como mais próxima da incerteza associada ao uso adverbial Sendo assim, a sequência «a alma de samicas» quererá dizer «a alma de não se sabe quem» ou «a alma de um desconhecido». Note-se, porém, que, nas fontes consultadas para elaboração desta resposta1, não foi possível achar outras atestações deste uso de samicas em sentido indefinido.

Sobre o nome samicas, convém registar as considerações que lhe dedicou Paul Teyssier (1915-2002) em 

Pergunta:

O jornal Observador envia por mail um anúncio para subscrição que começa com o seguinte título: «Nunca como agora precisamos tanto de si.»

A perceção que tenho é que não só faltam vírgulas a separar a oração «como agora», como falta um acento em "precisamos" (precisámos).

O facto parece enquadrar-se numa pandemia fonética que alastra e que consiste na pronúncia igual de tempos verbais diferentes cuja grafia é distinta: entramos/entrámos, compramos/comprámos, etc.

Creio que essa pronúncia está errada pois o acento está lá para se acentuar a sílaba. Ignorá-lo, não só prejudica a comunicação verbal, gerando equívocos de ordem temporal, como parece estar a contaminar a comunicação escrita, até junto daqueles com responsabilidades óbvias no seu uso correto.

Estou certo?

Obrigado.

Resposta:

Se o jornal em causa se dirige apenas a leitores de Portugal ou dos países africanos de língua portuguesa e se a intenção foi empregar o pretérito perfeito do indicativo*, a forma mais correta é efetivamente precisámos (as vírgulas a destacar «como agora» não são obrigatórias)1.

Se o jornal se dirige a todos os países de língua portuguesa, é legítimo, de acordo com a Base IX (4) do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, empregar a forma não acentuada da 1.ª pessoa do plural do pretérito perfeito de precisar: precisamos.

No padrão de pronúncia de Portugal, há de facto um contraste fonético entre a 1.ª pessoa do plural do presente do indicativo e a do pretérito perfeito do indicativo de verbos da primeira conjugação, que tem figuração gráfica: precisamos vs. precisámos.

Contudo, importa assinalar que o contraste fonético (e até fonológico) não se generaliza ao país, conforme se aponta numa anterior resposta.  Além disso, embora o atual acordo ortográfico permita que as duas formas verbais tenham a mesma terminação (-amos), independentemente da pronúncia que se lhe dê, a verdade é que já a anterior norma ortográfica, a de 1945 (Base XVII), considerava que o acento agudo na forma de pretérito perfeito do indicativo era diferencial, e não fonético. Com efeito, na Base XVII do Acordo Ortográfico de 1945, lê-se:

«Assinala-se com o acento agudo, nos verbos regulares da primeira conjugação, a terminação da primeira pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo: "amámos", "louvámo...

Pergunta:

Devemos escrever «ora viva, sejam muito bem-vindos», ou «ora vivam, sejam muito bem-vindos»? E porquê?

Muito obrigado.

Resposta:

No caso apresentado, como saudação, diz-se das duas maneiras:

a) «ora viva!» = simples saudação sem marca gramatical do destinatário;

b) «ora vivam!» = a saudação é explicitamente dirigida a duas ou mais pessoas.

Recomendar-se-ia b), se a saudação ocorresse associada a um sintagma nominal no plural como em «vivam os noivos» (melhor que «viva os noivos»), ou seja, como expressão de felicitação (Cf. Textos Relacionados).