Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na conhecida oração ave-maria, uma saudação à Virgem Maria, não deveria o vocativo Maria estar separado por vírgula («Ave, Maria, cheia de graça! O Senhor é convosco…», em vez de «Ave Maria, cheia de graça…», como aparece em todos os textos?

O mesmo se poderia perguntar em relação àquela outra oração católica salve-rainha: «Salve, Rainha, Mãe de misericórdia…», e não, como vemos sempre, «Salve Rainha, Mãe de misericórdia…».

Sabendo nós que os imperativos latinos ave e salve se tornaram interjeições de saudação em português («Viva, Maria!», «Olá, Maria!»), poderemos considerar que a falta de vírgula nos textos das orações ave-maria e salve-rainha se enquadra no chamado «consagrado pelo uso»?

Como neste interessante artigo [de Gonçalo Neves], do Ciberdúvidas se refere, «é frequentemente citada (e até se encontra numa aventura de Astérix...) a frase com que os gladiadores, já na arena, saudavam o imperador antes de entrarem em combate: "Ave, Cæsar, morituri te salutant." É curioso notar que o tradutor Paulo Rónai se serviu de salve para traduzir este ave: "Salve, imperador, os que vão morrer saúdam-te..."»

É interessante notar que o dicionário em linha Infopédia regista o seguinte, devidamente virgulado: «do latim eclesiástico Ave, Maria, «ave, Maria!»”

Muito obrigado.

Resposta:

Em nome do Ciberdúvidas, agradece-se a pergunta, que, no fundo, já inclui a própria resposta.

Na verdade, é de esperar, como observa o consulente, que uma vírgula figure entre ave ou salve e o nome próprio Maria, tal como acontece com outras sequências formadas por uma saudação e um vocativo: «olá, Maria»; «bom dia, César». Sendo assim, «ave, Maria» e «salve, Rainha» estão corretos do ponto de vista dos preceitos de aplicação da vírgula, enquanto as formas «ave Maria» e «salve Rainha» estão incorretas.

No entanto, e como também bem assinala o consulente, geralmente nestas situações não se escreve a vírgula, numa prática que configura uma exceção que se enraizou na escrita de tais expressões. Daqui não decorre que se considere este uso tão ou mais correto; nota-se, aliás, que há oscilações no registo da vírgula associada à interjeição ave, ora ocorrendo ora não, como acontece num documento digital associado à liturgia das horas e incluído nas páginas do Secretariado Nacional da Liturgia (SNL):

(1) «Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco.» (Dezembro, Próprio dos Santos, SNL)

(2) «Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre. Aleluia.» (idem, ibidem)

Contudo, não se pense que neste caso a vírgula é facultativa, porque a consulta de uma obra religiosa impressa, o Missal Quotidiano Dominical e Ferial (Lisboa, Paulus Editora, 2012, p. 2625), apresenta a vírgula devidamente colocada entre a interjeição e o nome Maria:

(3) «Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois entre as mulheres.»

E, na mesma fonte, atesta-se a vírgula a separar a...

Pergunta:

Se o adjetivo referente ao género denominado ensaio é ensaístico, qual seria o adjetivo mais adequado para referir-me ao género jornalístico chamado perfil? Ocorreu-me a palavra "perfilístico"; porém, só encontrei esse termo num único trabalho académico na Internet, o que me fez levantar dúvidas quanto à sua suposta existência em língua portuguesa.

Desde já, agradeço-lhes a atenção.

Resposta:

Embora esteja bem formado – de perfilista + -ico –, o adjetivo perfilístico não parece ter por enquanto uso no sentido de «característico de perfilista, isto é, de quem escreve textos do género jornalístico chamado perfil».

Assinale-se que, embora escassas, são já antigas as tentativas de empregar perfilista como «redator/escrito de perfis biográficos»:

(1) «Hermes Lima insiste para que eu escreva uma série de perfis de homens públicos que conheci. A generosidade dêsse velho e grande amigo quer fazer de mim um "perfilista", sem levar em conta que o perfil é um dos gêneros literários mais difíceis» ( Jayme Junqueira Ayres, "Esboço de um perfil", Tribuna da Bahia. Caderno 3. Salvador, 3 abr. 1971).

Como o mesmo que o inglês profiler, no sentido de «pessoa que faz perfis criminais», justifica-se o uso de perfilista (ver Helder Guégués, "Jornalista no divã", no blogue Assim Mesmo, em 08/03/2009), assim reforçando a legitimidade da derivação de perfilístico. E, em espanhol, deteta-se o uso da forma homóloga perfilístico, mas no sentido muito genérico de «relativo a perfil»: «Este artículo ha puesto especial énfasis en el análisis perfilístico de los combatientes extranjeros [...] («Este artigo deu espacial ênfase à análise perfilística dos combatentes estrangeiros»).

São, portanto, exemplos pouco numerosos os que criam margem para a aceitação de perfilístico. Outra possibilidade alusiva a perfil encontra-se no verbo perfilar, donde se deriva perfilador, que ocorre em pági...

Pergunta:

Mais do que uma vez, tem aparecido o termo "esculateira" para designar uma cafeteira de café usada em tempos mais idos. Sempre presumi que se tratasse de uma corruptela do termo "chocolateira". Em pesquisas procurei perceber se este termo estava referenciado como tal ou apenas o que apareceria numa pesquisa pela Internet.

Em português de Portugal nada é referido, mas está disponível alguma informação oriunda do Brasil onde o termo é mesmo usado na sua forma corrompida: esculateira.

Trata-se efetivamente de uma corruptela de chocolateira? Há algumas referências linguísticas, históricas, etnográficas ou outras, relativamente a este termo?

Resposta:

A palavra em questão, cuja grafia mais adequada é escolateira e que significa «cafeteira», é, com toda a probabilidade, uma deturpação de chocolateira.

Tem registo já antigo, sob a forma escolateira, num artigo datado de 1938, da autoria do etnógrafao alentejano Pombinho Júnior (1898-1983) e publicado na Revista Lusitana (vol. XXXVI, pág. 203) com o título "Vocabulário alentejano (Subsídios para o léxico português)", onde se pode ler o seguinte:

«escolateira, s. f. Forma popular de chocolateira (distrito de Évora).»

O autor citado acrescenta na mesma página, em nota:

«Nas falas populares alentejanas a silaba inicial cho transforma-se em es = 's. Outros exemplos: chocalho = escalho, 'scalho; chocolate = escolate, 'scolate, etc.»

Este registo, mais abreviado, figura também em dicionários recentes dedicados aos regionalismos do Alentejo, como são, por exemplo, o Dicionário de Falares do Alentejo (3.ª edição, 2013), de Vítor Fernando Barros e Lourivaldo Martins Guerreiro, e em Falares e Ditarenhos do Alentejo (2.ª edição, 2017, Lugar das Palavras Editora), de Luís Miguel Ricardo. Mas a melhor prova de o regionalismo ainda hoje perdurar é a própria pergunta da consulente.

Mesmo no Algarve, a palavra não é desconhecida, pelo menos, na região de Monchique, como evidencia a entrada que lhe dedica Mário Duarte no seu Glossário Monchiqueiro (...

Pergunta:

Parece-me que a grafia da palavra em epígrafe, desde há muitos anos, nunca foi consensual:

– o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1940 regista assimptota (sem acento agudo);

– o de 1945, da mesma forma;

– o [Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua Portuguesa] de 2012  regista assintota (também sem acento agudo).

– O Grande Dicionário da Língua Portuguesa, coordenado por José Pedro Machado, regista assíntota.

– O dicionário da Porto Editora, de 2010, acordizado, regista assímptota (AO)/assimptota (AO) e assíntota (dAO)/assintota (dAO).

– Também, o dicionário da Texto Editora (1995), já acordista, regista assíntota.

– O Vocabulário da Língua Portuguesa (Porto Editora 2010), acordizado, regista assimptota (sem acento agudo).

Nas referências bibliográficas, fico-me por um etc.

Assim, a minha dúvida é: como deverei escrever a palavra em causa, antes e depois do Acordo 1990?

Justifico a dualidade pelo facto de não aceitar o AO90, mas tenho] netas, às quais presto auxílio, que estão, curricularmente vinculadas ao actual Acordo Ortográfico (assímptota/assíntota/assintota é vocábulo muito usado em Matemática, no estudo de funções e seus gráficos.)

De qualquer modo, tenho dificuldade (dificuldade de constrangimento) em pronunciar como palavra grave; soa-me ridículo!

Agradecendo a Vossa sempre douta e gentil resposta, apresento melhores cu...

Resposta:

Por enquanto, qualquer uma das formas em questão está correta1. Mas a pergunta tem duas vertentes:

1- A palavra é grave ou esdrúxula?

Como o consulente bem aponta, já em 1940, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa registava apenas assimptota como forma correta; e, em 1966, no Vocabulário da Língua PortuguesaRebelo Gonçalves chega a indicar que considera inexata a forma assímptota.

No entanto, em 2001 , o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, registava a forma esdrúxula (proparoxítona) assímptota, ao lado de assíntota, também esdrúxula. Sublinhe-se que este dicionário já registava uma forma com p e outra sem esta letra, quando o Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90) ainda não estava em vigor, e, portanto, ainda não tinham sido feitas as alterações decorrentes da supressão na escrita das chamadas "consoantes mudas". Registe-se ainda que, no Brasil, são corretas as duas variantes da palavra, a grave (paroxítona) e a esdrúxula, como pode confirmar a consulta do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras.

Sintetizando este ponto d...

Pergunta:

Na frase «o André encontrou um baú e lá dentro tinha um mapa», pergunto-vos se a frase é aceitável ou se teria sido aconselhável o uso do verbo haver.

Obrigado.

Resposta:

Nas modalidades culta e corrente do português de Portugal, emprega-se sempre haver com valor existencial e, portanto, diz-se e escreve-se «havia um mapa». No entanto, a frase em questão pode ser aceitável, se, por exemplo, num diálogo se pretender imitar um regionalismo da Madeira.

Na verdade, além de ter com valor existencial ocorrer de forma muito frequente ou generalizada no português do Brasil, regista-se este uso também regionalmente em Portugal. É o caso da Madeira, onde ter existencial está disseminado entre os falantes, conforme se atesta no sítio eletrónico Aprender Madeira (consultado em 09/02/2020; sublinhado nosso):

«[...] esta construção está presente em variedades do PE [português europeu], nos arquipélagos dos Açores e Madeira [...]. Trata-se de uma construção em que o verbo ter é usado não com o seu valor de posse, como na gramática da variedade normativa do PE, mas sim como verbo existencial, em vez da variante normativa com haver, fenómeno que se encontra ilustrado através dos exemplos, em (7) [...]:

7) a. “Porque aqui à nossa frente, tinha um alto, tinha um moinho de vento e não via a casa da minha mãe! [...]”;

b. “Mas tinha muitos moinhos por aqui fora. ([...]” [...].»

A substituição de haver por ter decorre de uma tendência de séculos, que levou, por exemplo, a ter tornar-se verbo auxiliar dos tempos compostos: «ele havia tido» > «ele tinha tido» (cf. "Acerca da história dos verbos haver e ter").