Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
436K

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Sempre disse e ouvi dizer o nome Isaac como que contraindo os dois a em á; portanto [Izáque].

Recentemente ouço dizer e ler este nome de outras formas, nomeadamente [Izá-áque].

Eu julgava que o uso tinha consagrado a primeira forma de dizer, mesmo mantendo a grafia que aparece já desde a personagem bíblica, o patriarca Isaac filho de Abraão. Mas agora fico na dúvida.

Poderiam esclarecer se neste caso há ou não uma forma correta de dizer este nome.

Muito obrigado por todo o vosso trabalho.

Resposta:

A forma tradicional de pronunciar o nome Isaac é [izak]. Isto mesmo sugerem as variantes ortográficas o nome: Isac, Isaque e Isá (cf. Vocabulário da Língua Portuguesa de 1966 e Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1940). A pronúncia [izaak], sendo aceitável1, não é preferível: será uma pronúncia afetada, induzida pela grafia.

 

1 No entanto, no caso de Aarão, que exibe dois aa, considera-se que os dois a são articulados (ver Textos relacionados). Mesmo assim, é de notar a variante Arão (cf. Rebelo Gonçalves op. cit.), a qual sugere a tendência para simplificar a dupla ocorrência da vogal numa só.

Pergunta:

Peço desculpa pelo reparo, mas na resposta dada pela Dr.ª Sara Leite a propósito da palavra parlapiê é mencionada a palavra "escanifobético", que, aliás, aparece no título da resposta.

Penso que a forma correcta será "escaganifobético", tal como se dizia no meu tempo e regista o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, edição de 2009. Não será assim?

Obrigado.

Resposta:

Trata-se de palavras do registo familiar, com eventuais intrusões do nível calão, pelo que é difícil identificar a forma correta, no sentido de mais fiel a um uso mais antigo. Na verdade, podem até conhecer-se outras variantes, explorando a expressividade das palavras. Parece ser este o caso.

No Novo Dicionário de Calão (2005), de Afonso Praça, registam-se as duas formas escanifobético e escaganifobético, sem indicação sobre se uma tem precedência histórica sobre a outra; e no Dicionário de Expressões Populares Portuguesas (1999), de Guilherme Augusto Simões, consignam-se as variantes menos comuns escalafobético" e escagalifobético. O dicionário Priberam regista a palavra escanifobético como variante de escaganifobético, mas ao remeter aquela para esta, sugere que dá prioridade à que tem mais sílabas, ainda que o critério não seja claro.

Acrescente-se que as fontes consultadas pouco adiantam sobre a origem desta palavra tão variável: diz-se que terá génese obscura ou que é vocábulo expressivo, com a sonoridade a sugerir a própria estranheza denotada.

Em suma, perante os dados recolhidos, não se afigura possível confirmar que a forma original da palavra fosse escaganifobético.

Pergunta:

"Participativo".

1. A palavra existe na Língua Portuguesa?

2. Será um neologismo? Quando passou a fazer parte do vocabulário da Língua?

Só a conheci, por volta dos anos 80, como calinada dos professores do Ensino Básico (mesmo os de Língua Portuguesa) que a empregavam ao avaliar a participação dos seus alunos nas actividades lectivas.

Deparei-me ultimamente com a expressão «orçamento participativo». Se a palavra "participativo" é o adjectivo que os professores usavam na avaliação dos alunos, pergunto: o orçamento participa em quê?

Obrigado.

 

[O consulente escreve conforme a norma anterior ao Acordo Ortográfico atualmente em vigor]

Resposta:

O adjetivo participativo existe, quer porque é usado há já algum tempo, quer porque está dicionarizado, quer ainda porque se forma de acordo com as regras da morfologia da língua portuguesa e é, portanto, legítimo. Mas pode levantar-se a questão de saber se a palavra tem usos que configuram uma situação de impropriedade vocabular, como o consulente parece considerar.

No entanto, os dados históricos e interpretativos não confirmam tal perspetiva: é verdade que participativo não consta do Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), de Rebelo Gonçalves, mas fontes lexicográficas mais tardias já o consignam – é o caso do Vocabulário Ortográfico (2001), de José Pedro Machado. Por outro lado, a definição de participativo, mesmo considerada composicionalmente, isto é, pela soma dos seus constituintes (o tema verbal participa- e o sufixo -tivo), não é incompatível com os usos descritos na questão enviada: «1 que se refere a participação; 2 que se caracteriza por ou propicia a participação Ex.: movimento participativo» (Dicionário Houaiss).

Sendo assim, respondendo diretamente à pergunta, embora já tenha sido um neologismo, participativo constitui hoje uma palavra que se enraizou no uso, sem que se conheça nenhuma restrição de caráter normativo. Poderá objetar-se que os adjetivos sufixados por -tivo e -ivo são causativos, o que se confirma pela interpretação de casos como desenjoativo («que faz desenjoar») ou vomitivo («que faz vomitar»)1. Quanto à expressão «orçamento participativo», também não se vislumbra erro, visto que o sufixo -tivo pode marcar genericamente a noção de «relativo à participação».

 

...

Pergunta:

Gostaria de saber se a expressão «já se fazem horas» está correta segundo o padrão da norma culta da língua portuguesa.

Um exemplo de uso seria: «Vamos embora, pois já se fazem horas.»

Resposta:

 A frase está correta, e há exemplos literários desta construção, quer do Brasil, quer de Portugal:

(1) «Entretanto, faziam-se horas. Os examinadores estavam já reunidos na sala de exames [...].» (Aluísio Azevedo, Casa de Pensão, 1884)

(2) «Estão a fazer-se horas do seu jantar, Magalhães.» (Carlos Oliveira, Uma Abelha na Chuva, 1953)

Poderia julgar-se que, neste caso, o verbo fica no singular, como acontece com a construção «já faz oito horas que ela desapareceu» (cf. Dicionário Houaiss, s.v. fazer), a qual é equivalente a «já há oito horas que ela desapareceu», para expressar o tempo decorrido. Não sendo impossível dizer-se ou escrever-se «já se faz horas», com o verbo no singular, como em «já se faz tarde», acontece, porém, que com a expressão das horas se notam certas peculiaridades de uso que se tornaram norma pela força do uso. Com efeito, na construção em apreço, o verbo concorda com «horas», no plural, à semelhança do verbo dar, cuja aplicação a horas se faz intransitivamente, de maneira menos habitual, segundo Evanildo Bechara, na sua Moderna Gramática da Língua Portuguesa (Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2003, p. 563):

«Se aparece o sujeito relógio, com ele concorda o verbo da oração: "O relógio deu duas horas." Não havendo o sujeito relógio, o verbo concorda com o sujeito...

Pergunta:

Qual a forma correcta de se dizer:

«Garfo de peixe», ou «garfo a peixe»?

«Garfo de carne», ou «garfo a carne»?

Obrigado.

Resposta:

Em português as formas usadas para referir a finalidade de cada talher apresentam sempre a preposição de: as formas corretas são, portanto, «garfo de peixe/carne», tal como se emprega «colher de sopa/sobremesa». É também possível a preposição para – «garfo para peixe/carne» –, mas trata-se de um uso menos consolidado e, portanto, menos corrente, para vincar a finalidade do talher em referência.

Note-se que se atesta o uso de «garfo a peixe/carne» em páginas da Internet, mas trata-se com toda a probabilidade de um galicismo que não se justifica. Com efeito, a ocorrência da preposição a parece dever-se à influência do francês, língua em que a preposição à exprime muitas vezes relação e finalidade; daí que «garfo a peixe/carne» evoquem facilmente «fourchette à poisson», ou seja, «garfo de peixe».