Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
436K

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Depois do Brexit, eis um derivado do termo inglês mais propalado nos media portugueses dos últimos tempos já com circulação mais do que garantida: Mayexit. Gostava de ter um comentário da equipa do Ciberdúvidas.

Muito obrigado.

Resposta:

É um neologismo que muito provavelmente só terá algum uso na comunicação social ou noutras instâncias, enquanto a demissão da primeira-ministra britânica Theresa May em 24/05/2019 tiver atualidade ou merecer alguma nota historiográfica futura. Tomando por modelo a forma Brexit, pode analisar-se Mayexit como a associação1 do apelido inglês May ao nome comum exit, que significa «saída» – ou seja, trata-se de um vocábulo que, com alguma ironia, refere a demissão de Theresa May no contexto da (conturbada) saída do Reino Unido da União Europeia.

Recorde-se que este processo, desencadeado na sequência do referendo de 6 de julho de 2016, tem sido fértil em palavras deste tipo, todas resultado da criatividade dos media anglo-saxónicos e rapidamente adaptados a outras línguas, entre elas o português. São exemplos Brexit, Bremain e flextension ( de flexible extension, «prorrogação flexível»). Estes e outros termos se justificam no discurso mediático; e o seu tom informal parece não constituir impedimento para a sua ocorrência, pelo menos, no caso de Brexit, que, a par da designação analítica «saída do Reino Unido da União Europeia», figura mesmo em certos documentos produzidos oficialmente em Portugal, como acontece com o Plano de Preparação para a Saída do Reino Unido da União Europeia (datado de 17/01/2019 e atualizado em 3/04/2019).

Sobre o vocabulário do Brexit, leiam-se os Textos Relacionados e o artigo "

Pergunta:

Gostaria de saber porque nuvem se escreve com v e nublado, neblina, com b.

Resposta:

Apesar de se tratar de palavras que remontam à mesma raiz latina, nub-, a história de cada uma delas explica que no primeiro caso se escreva com v e nos outros dois, com b.

Nuvem terá do latim vulgar nube, por via popular1. O -b- latino intervocálico passa geralmente a [v], que a ortografia representa por <v>: debet > deve; faba > fava; habere > haver; nube > nuvem2.

Nublado é um adjetivo com origem no particípio passado do verbo nublar, verbo que vem do latim nubĭlo, as, avi, atum, are , «cobrir-se de nuvens, enevoar-se, nublar-se». Atestam-se as formas anubrar e, no século XVIII, nuvrar, mas na atualidade prevalece nublar, que exibe b provavelmente por interferência culta.

Neblina provém do castelhano neblina, um diminutivo de niebla, que, em português, é o mesmo que nevoeiro ou névoa. Observe-se, aliás, que niebla e névoa são palavras cognatas, isto é, são palavras de línguas diferentes mas que evoluíram do mesmo étimo latino – nebŭla , «névoa, nevoeiro, cerração»3.

 

1 É a etimologia proposta pelo Dicionário Houaiss (2001), que, seguindo Edwin Williams [

Pergunta:

 No poema "Barca Bela" [de Folhas Caídas] de Almeida Garrett (1799-1854), o ultimo verso deve grafar-se "ó pescador " ou "oh pescador"?

Obrigada.

Resposta:

Pelo contexto, depreende-se que deveria escrever-se «ó pescador», conforme outros vocativos, em que se emprega a interjeição ó para marcar chamamento ou interpelação.

No entanto, o que se lê em várias edições e reproduções do poema é oh, a interjeição que «expressa surpresa, desejo, repugnância, tristeza, dor, repreensão» (Dicionário Houaiss, 2001) e que costuma ser seguida de ponto de exclamação ou vírgula. É de supor que certas edições recentes mantenham a forma oh por fidelidade ao que figura na edição de 1853 de Folhas Caídas, na qual se grafa oh.*

No contexto do ensino não universitário, pode considerar-se mais adequado escrever-se ó, em lugar de oh, muito embora se possa pensar que esta opção se revela um tanto empobrecedora, tendo em conta a polissemia e a margem de liberdade da linguagem poética.

 

* Veja-se, por exemplo, Flores sem Fruto e Folhas Caídas de Almeida Garrett, edição de Paula Morão, 4.ª ed., Lisboa, Comunicação, 1987.

Pergunta:

Desde criança que oiço o termo “espenéfico”, com o sentido de «espevitado, atrevido, pretensioso»: «Andas muito espenéfico – disse a mãe ao filho, já farta de o ver armado em engraçadinho.»

Com espanto, não encontrei este vocábulo em nenhum dos vários dicionários que consultei. No entanto, numa busca no Google, esta palavra aparece utilizada por algumas pessoas, duas das quais afirmam «estar em todos os dicionários»!...

 

[Exemplos:]

– «Em tempos do "Botequim" à Graça, ouvi a Natália Correia dizer a propósito da actual jurada do Prémio Pessoa: "o quê? Essa espenéfica"?
Pensei que se tratava de um regionalismo açoriano. Mas afinal a palavra, muito adequada, está em todos os [d]icionários de [p]ortuguês. [...]

O significado anda mais ou menos na área semântica d[e]: presumido, pretensioso no aspecto e nos modos.

E está realmente em todos os dicionários.» (blogue Insónia, 29/05/2006)

– «A Joanita está um bocado espenéfica, não deve interessar a partido nenhum. Tem que ir à psicanálise e pedir perdão ao Guru Louçã.» (blogue Arrastão, 01/08/2009)

– «Nunca te calas e nem ouves o nome das pessoas, sê menos espenéfica.» (página de Facebook)

– «Ele queria aquele, claro, mas mesmo assim foi buscar outro e a espenéfica foi atrás! (blogue Resposta:

As formas apresentadas na pergunta não encontram registo nos dicionários consultados para a elaboração da presente resposta1. Torna-se, portanto, difícil identificar a forma mais correta, perante a variação evidenciada pelos exemplos remetidos pelo consulente, a que se junta mais outro, extraído do Corpus do Português de Mark Davies: 

(1) «A convocação era urgente tendo até o Cabeça de Vaca almoçado no seu gabinete dividindo uns bolos melados com a dactilógrafa espernéfica-possidónia.» (Rúben A. Páginas, 1988)

Há, contudo, registo dicionarístico de espanéfico, «muito espalhafatoso no trajar, no andar, no falar» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa; ver também dicionário da Porto Editora na Infopédia e Vocabulário da Língua Portuguesa, 1966, de Rebelo Gonçalves)2, sentido não exatamente coincidente com o de  espenéfico/

Pergunta:

Os exemplos aduzidos por Napoleão Mendes de Almeida no seu Dicionário de Questões Vernáculas não apresentam o verbo parecer flexionado na 1.ª e na 2.ª pessoa do singular e do plural.

Uma vez que procurei em diversas gramáticas exemplos nas pessoas mencionadas, dentre elas, na d[e] Mira Mateus [Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial caminho, 2003], desejava saber se vocês poderiam aduzir exemplos de autores portugueses que construíram esse verbo na 1.ª e na 2.ª pessoa do singular e do plural com infinitivo [...] não flexionado, como, nestes exemplos: «Eu pareço querer mudar o mundo.»; «Tu pareces agir como Bacharel de Cananeia.»

Por último desejava ainda saber se esse emprego é lídimo português ou se é já brasileiro, [e]m razão de as [...] completivas equivalerem a «Eu pareço que quero mudar o mundo» [e] «Tu pareces que ages como Bacharel de Cananeia». Não haveria porventura um engano, já que o pronome eu não é sujeito de pareço, mas de quero, de querer, da mesma maneira que o tu não é sujeito de pareces, mas de ages, de agir.

Mais uma vez os meus agradecimentos ao vosso trabalho, de que tanto o Brasil precisa.

Resposta:

Não há qualquer erro em «Eu pareço querer mudar o mundo», nem em «Tu pareces agir como Bacharel de Cananeia».

Tal como acontece com a 3.ª pessoa do singular e do plural («ela parece querer mudar o mundo», «elas parecem agir como bacharéis de Cananeia»), é possível conjugar o verbo parecer na 1.ª e 2.ª pessoas do singular e do plural, numa construção conhecida como elevação do sujeito (o que explica que, nos exemplos em questão, os pronomes eu e tu se relacionem com os infinitivos querer e agir, que ocorrem nas orações subordinadas). Trata-se de um uso que ocorre há muito tempo tanto em Portugal como no Brasil, por exemplo, em textos literários e jornalísticos dos séculos XIX e XX (pesquisa feita no Corpus do Português de Mark Davies):

(1) (a) «[...] eu, publicando as suas Cartas pareço lançar estouvada e traiçoeiramente o meu amigo, depois da sua morte, nesse ruido e publicidade a que ele sempre se recusou [...] (Eça de Queirós, Correspondência de Fradique Mendes, 1900)

   (b) «Já estou me acostumando a sentir emoções fortes, como esta. Acho que não pareço ter 93 anos", conta o aniversariante.» ("Crianças homenageiam Capiba", 29/10/1997)

(2) (a) «[...] tu, que me recordas a minha pobre Beatriz, que pareces ter herdado os modos, os gostos, os sentimentos dela [....