Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No concelho de Castelo Branco, freguesia de Santo André das Tojeiras, há um lugar designado Bornazeiro Cortado. O que é um "bornazeiro"?

Resposta:

Não foi possível achar registo dicionarístico de um nome comum com a forma "bornazeiro".

Podem, no entanto, encontrar-se palavras que apresentam alguma parecença fonética e morfológica, o que, não sendo um critério seguro de pesquisa etimológica, se apresenta muitas vezes como pista de recurso quando escasseia a informação. Assim, mencione-se o vocábulo bornaceira, que, além de significar «tempo quente, abafado», pode querer dizer «pedra branca ou acastanhada», pelo menos em galego (cf. Dicionário Estraviz)1. Pode também pensar-se que o topónimo em questão seja uma variante de borneiro ou borneira, termo que denomina um certo tipo de pedra negra, com que se faziam mós, as quais eram conhecidas pelo mesmo nome (ver Cândido de Figueiredo, Novo Diccionário da Língua Portuguesa, 1913). Nesta perspetiva, talvez "bornazeiro" se relacione com um apelativo da noção de "pedra", hipótese que poderia ver-se reforçada pelo facto de o topónimo inclui ainda a palavra cortado, eventual alusão a um corte na rocha. Outra hipótese seria encarar "bornazeiro" como deturpação de borrazeiro ou borrazeira, nome de uma espécie de salgueiro (cf. Dicionário Houaiss e José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, 2003). Enfim, faltam elementos para explicar a etimologia do topónimo Bornazeiro Cortado.

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Pergunta:

Qual será o significado concreto da terminação -um em vocábulos como vacum, ovelhum, cabrum, bodum?

Consultei o Dicionário Houaiss que apenas nos esclarece que vem do latim -unu- > - ũu > -um.

 

Resposta:

O sufixo -um ocorre sobretudo em adjetivos dos dois géneros derivados de nomes de animais – cabrum, ovelhum, vacum – (cf. dicionário eletrónico da Porto Editora), aos quais se associa a noção de «qualidade animal» (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, s.v. -um). Também figura em adjetivos como bafum, «bafio, mau cheiro», bodum, «(literalmente) cheiro de bode, a bode», ou fartum, «cheiro a ranço, bafio, mau cheiro», com o significado genérico de «cheiro animal, mau cheiro» (cf. ibidem).

A relação de -um com o sufixo latino -unu- é confirmada, não de maneira perentória, por José Pedro Machado, no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (mantém-se a grafia original):

«-um, sufixo que indica a ideia de qualidade ou raça animal, de origem ainda não bem esclarecida, mas provàvelmente do lat[im] -ūnu: bezerrum (arcaico bezerruno), cabrum, carneirum, cavalum (kavaluno [...])[1], cervum, gatum, ovelhum, vacum, etc.»

A forma latina -ūnu terá origem popular, como variante do sufixo também latino -inu-. Assim, por exemplo, o adjetivo cabrum terá evoluído de *caprunu- (forma hipotética), usada por caprinu- (que, por via erudita, deu caprino em português); com a mesma variante sufixal teriam surgido ovelhum e vacum, talvez porque esta série de adjetivos se associa à mesma palavra – gado  , como em «gado cabrum», «g...

Pergunta:

Parece não haver dúvidas que o vocábulo latino *insapidus, do latim clássico insipidus, originou o nosso vocábulo enxabido, que, com o prefixo de reforço des-, deu origem a desenxabido.

A minha pergunta é se é possível saber-se por que razão estas palavras se escrevem com x em vez de s, como acontece em algumas regiões aqui referidas na resposta "As variantes de desenxabido".

Muito obrigado,

Resposta:

A resposta tem de ter como enquadramento o período inicial de desenvolvimento da língua, ou seja, o período galego-português (do século IX a XIII, aproximadamente).

Não há certezas quanto ao fenómeno fonético que ocasionou a passagem da consoante fricativa apicoalveolar surda [s̪] (o chamado "s beirão") à consoante fricativa palatal [ʃ] (o som representado por ch em chá ou x em baixo). Existem várias hipóteses, entre elas, a de, no sistema galego-português medieval, a proximidade dos pontos de articulação das duas consoantes favorecia a sua permuta. Assim se compreende que, no período medieval, o pronome pessoal átono se se escrevesse frequentemente xe; ou que o latim insertare, «inserir», dê origem a enxertar, «inserir, transplantar» (ver Edwin B. Williams, Do Latim ao Português, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2001, pág. 73; para uma discussão mais aprofundada, ver também Ramón Mariño Paz, Fonética e Fonoloxía Históricas da Lingua Galega, Vigo, Edicións Xerais de Galicia, 2017, pág. 335-340). O mesmo terá, portanto, ocorrido nos primórdios do português, no passo de *insapidus (variante vulgar do latim insipidus, «sem sabor, insípido») a enxabido (donde derivou desenxabido).

Acrescente-se que este fenómeno também se encontra documentado nos dialetos castelhanos e aragoneses (cf. Joan Coromines e José Antonio Pascual,

Pergunta:

Num texto dado à estampa ("Pela democracia e pelas liberdades na Catalunha", Público, 23/04/2019), um dos subscritores identifica-se como "mediólogo". Sendo quem é – o professor universitário especialista na área dos media J.-M. Nobre-Correia –, depreende-se que a palavra pretende significar isso mesmo: estudioso dos media.

Acontece que não encontro essa definição regidstada em nenhuma fonte autorizada. Pelo contrário, no Brasil, o termo equivale a «especialista em classe média – classe-mediólogo» (cf. revista Veja).

Fico agradecido pelo esclarecimento.

Resposta:

Trata-se de uma inovação lexical, isto é, de um neologismo do português de Portugal, que, embora correto, não pertence à linguagem corrente, antes se adequando a âmbitos de referência especializados. É, pois, compreensível que o vocábulo mediólogo ou medióloga não figure nos dicionários gerais, nem mesmo nos mais recentes.

Uma pesquisa na Internet permite confirmar que a palavra ocorre já há alguns anos, com o significado definido pelo consulente: «especialista em estudos sobre media». É um termo bem formado, composto pela palavra media*, «meios (de comunicação) de massas», e o elemento compositivo -logo/loga, «o que estuda, conhece, é especialista em». Também se pode formar mediologia, interpretável como «estudo dos media».

Observe-se que, no Brasil, ocorre a forma mídia, em lugar de media, pelo que os compostos correspondentes aos usos de Portugal, são midiólogo e midiologia, palavras que se atestam em páginas da Internet, com significado próximo de mediólogo e mediologia.

Quanto à forma "classe-mediólogo", diga-se que é uma palavra possível, constituída pela expressão «classe média» e o referido elemento compositivo -logo/loga, não constituindo, portanto, um composto em que participe o termo media. Além disso, é uma criação jocosa do jornalista Reinaldo Azevedo, que a inclui no artig...

Pergunta:

Devemos escrever «Ele virou as costas e saiu» ou «Ele virou costas e saiu»?

Já encontrei uma indicação sintética de que deveria ser «virar costas», o que também me parece soar melhor (não estamos, na verdade, a virar as costas ao contrário!); mas é tão comum ver «virar as costas» que pergunto se a expressão está correta.

Muito obrigado.

Resposta:

As duas expressões estão corretas, mas podem ter significados ligeiramente diferentes:

(1) virar as costas: «não ver de frente, voltar-se para o outro lado»

(2) virar costas: «retirar-se, fugir»

Em (2), a ausência do artigo definido dá um sentido mais abstrato (ou menos literal) à associação verbo-nome do que em (1).

No entanto, há registos dicionarísticos das duas expressões muito pouco contrastados, como acontece no Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa de Énio Ramalho:

(3) «Virar as costas a: o P. ontem virou-me as costas quando me dirigia a ele (virou-se para outro lado para evitar o cumprimento); ele virou as costas ao amigo quando já não precisava dele (afastou-se, abandonou-o).»

(4) «Virar costas: com uma força tão impetuosa que a não puderam sofrer os holandeses, nem se atreveram a sustentar o campo, e logo viraram costas (retiraram-se, abandonaram a luta, fugiram) - Vieira, Cartas, Cl. Sá da Costa, I, 29.»

Nota-se que a segunda abonação de (3) pouco difere da contida em (4), pelo que se conclui que «virar as costas», com artigo definido, também se presta a leituras mais abstratas ou mais metafóricas.