Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Os termos predisposição, susceptibilidade e vulnerabilidade são utilizados com frequência em saúde/medicina. Existem claras diferenças sobre os respetivos significados e seguem-se algumas definições, de acordo com o dicionário on-line da Priberam*:

Predisposição: Disposição natural para contrair certas doenças, certos hábitos, etc.

Susceptibildade: Disposição especial do organismo para acusar influências exercidas sobre ele ou para adquirir doenças.

Vulnerabilidade:Qualidade de vulnerável.

Assim, justificava-se uma utilização diversa, no entanto, os conceitos são, com frequência, utilizados como se de sinónimos se tratassem.

Gostava de ir mais longe e identificar alguns elementos que, corretamente utilizados, acrescentassem a esses termos, melhorando a qualidade da sua utilização. Será indicado referir a predisposição como mais próxima das componentes genéticas, a vulnerabilidade associada a caraterísticas morfológicas e a susceptibilidade a elementos individuais que incluam o perfil psicossocial?

Obrigado pela vossa atenção.

* Predisposiçãosuscetibilidadevulnerabilidade in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.

Resposta:

A distinção que o consulente propõe é possível como forma de elaborar uma dada terminologia num determinado quadro de análise ou numa teoria. Convém observar, porém, que a consulta dos dicionários gerais muitas vezes aponta para certo grau de sobreposição semântica entre palavras que pertençam ao mesmo campo lexical. Por outras palavras, do ponto de vista da descrição estritamente linguística, é natural que, por exemplo, as três palavras em questão possam substituir-se mutuamente em certos contextos.

No plano da linguagem mais estritamente médica, o contraste mais nítido estabelece-se entre suscetibilidade e predisposição. Com efeito, nos textos de medicina, em português, o contraste entre os termos predisposição e suscetibilidade (ou susceptibildiade) decorre mais da sua associação (colocação) com outras palavras do que da sua oposição semântica. Por exemplo, diz-se «predisposição herdada» e «predisposição genética», mas empregam-se «genes de suscetibilidade» e «variantes genéticas de susceptibilidad», não havendo permuta entre predisposição e suscetibilidade nestas expressões (ou seja, não ocorrem ou não são frequentes «suscetibilidade herdada/genética», nem «genes/variantes genéticas de predisposição»). No entanto, há outras colocação em que as palavras em referência podem permutar; ex.: «doenças de suceptibilidade/predisposição genética» (designação que se usa por oposição às doenças genéticas ou de causa genética). Por último, quanto ao termo vulnerabilidade, parece este não ter uso especializado, podendo, no entanto, correr como palavra não específica, sinónima de predisposição e suscetibilidade1.

Apesar de tudo, em áreas profissionais e de investigação mais próximas ou mais afa...

Pergunta:

Sei que a expressão habitual é «estou a caminho», mas eu tenho o hábito de dizer «vou a caminho».

É correcto dizer-se «vou a caminho» (de um lugar)?

Exemplo: «Vou a caminho do trabalho»

Desde já obrigada pela atenção.

Resposta:

Está correta a frase «vou a caminho do trabalho».

Do ponto de vista semântico, não se identificam restrições que invalidem a frase e também não parece haver preceito que desaconselhe o emprego de ir com «a caminho». Esta expressão combina-se com diferentes verbos, alguns de movimento: «estar a caminho», «pôr-se a caminho», «meter-se a caminho», «seguir a caminho», «vir a caminho», «ir a caminho».

Exemplos da autores literários:

(1) «Percebo, agora percebo muito bem: vou a caminho do meu escritório, estou no Brasil, em...» (José Rodrigues Miguéis, Páscoa Feliz, 1932)

(2) «Quando a família de Santa Eulália ia a caminho de casa com a afilhada [...]» (Camilo Castelo Branco, "Maria Moisés", in Novelas do Minho, 1875-1877)

Pergunta:

Poderiam confirmar-me a evolução fonética de dous>dois? Houve alguma epêntese do i? É apenas um processo de regularização da escrita? É esta a minha dúvida.

Obrigado pelo vosso trabalho.

Resposta:

Na passagem de dous (hoje um arcaísmo) a dois, regista-se uma alteração de segmentos, mais especificamente, uma dissimilação.

O ditongo ou – ainda pronunciado em várias regiões do norte de Portugal – tem o problema de as vogais constitutivas apresentarem um timbre e um grau de abertura próximos. Acontece que em vários dialetos portugueses este ditongo ou se monotongou (isto é, contraiu-se numa única vogal, fazendo com que roupa hoje soe "rôpa"), ou se alterou no sentido de uma diferenciação – foi o sucedido com ou > oi.em palavras como coisa, doido e dois.

Procurando manter o ditongo, muitos falantes optaram pela semivogal que, no sistema fonológico português, estava em alternativa a u, o mesmo é dizer i (os ditongos em português têm sempre ou a semivogal u, ou a semivogal i). Esta semivogal permite a conservação do ditongo por contrastar nitidamente com a vogal nuclear do mesmo.

Tudo isto explica que, em Portugal, ainda hoje haja oscilações entre touro e toiro, ouço e oiço, ouro e oiro, etc.

O numeral dous também foi afetado por esta oscilação, mas a norma acabou por escolher e fixar a forma dois. É o mesmo tipo de evolução que levou a substituir cousa por coisa. Note-se que, em galego, ainda se mantêm as formas da língua medieval: dous,

Pergunta:

Gostaria de saber qual é a forma correta do nome: "Gertrude" ou "Gertrudes"? Ou ambas são aceitáveis?

Obrigado.

Resposta:

A forma fixada pela tradição normativa é Gertrudes, conforme regista o Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), de Rebelo Gonçalves. Este mesmo autor refere, como de uso popular, a forma Estrudes, mas não inclui "Gertrude" como eventual variante.

Gertrudes" é igualmente a entrada deste nome próprio no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa (2003), de José Pedro Machado, que lhe dá como origem o francês Gertrude, este, por sua vez, empréstimo do alemão Gertrud, por via alsaciana. O aportuguesamento exibe um -s, que Machado atribui à fonética popular (adição de um segmento no fim da palavra, ou seja, paragoge). Este autor menciona ainda que a variante Estrudes resultará de uma reinterpretação fonética do nome a partir de outra variante "G'trudes". Embora Machado não explique esta relação, é provável que, por queda do e da primeira sílaba (aférese), o segmento g (uma fricativa pré-palatal sonora) tenha ensurdecido por assimilação à consoante t, também surda, fazendo a palavra soar "chtrudes".

Como se disse, é nome de origem alemã, segundo ainda Machado (op. cit.) um composto dos elementos germânicos gari-, ger-, «...

Pergunta:

O é da palavra xibolete pronuncia-se aberto ou fechado?

Resposta:

A palavra xibolete, que significa «gesto ou sinal usado como meio de identificação; senha» e «característica que permite distinguir ou identificar um indivíduo como pertencente (ou não) a determinado grupo» (Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, disponível na Infopédia), pronuncia-se geralmente com e aberto.1

Este vocábulo tem origem no hebraico shibboleth – na escrita hebraicaשִׁבֹּלֶת –, que significa sobretudo «espiga», mas também «curso de água, torrente». A esta palavra associa-se um episódio incluido no Antigo Testamento, mais precisamente no livro dos Juízes 12, 4-6. Segundo esse relato, o povo de Efraim, derrotado pelo de Guilead, pôs-se em fuga e pretendeu atravessar o rio Jordão, guardado pelos vencedores. Para identificarem os fugitivos, os de Guilead obrigavam quem pretendia franquear o rio a pronunciar shibboleth (som inicial igual ou parecido ao x de xaile). Os efraimitas eram sempre apanhados e executados, porque só conseguiam pronunciar sibboleth (consoante inicial igual ou parecida ao s de seta).

 

1 Apesar de na Infopédia se transcrever a palavra com o símbolo fonético do e fechado – [e] –, a entrada nos dicionár...