Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho lido (e também li numa das respostas do Ciberdúvidas, sobre o verbo atestar) a formulação «até acima».

Pergunta: não deveria ser «até cima»?

Por exemplo: «Ligou os joelhos até acima», vs. «cima».

Obrigado.

Resposta:

São duas possibilidades corretas.

Considerando que se diz e escreve corretamente «até abaixo», associando, portanto, a preposição até com o advérbio abaixo, não se vê razão para considerar incorreta a sequência «até acima», também formada pela mesma preposição e pelo advérbio acima.

Contudo, é também verdade que, a partir de locuções como «de cima» e «por cima», parece legítimo isolar cima e formar «até cima». Esta possibilidade, porém, não encontra paralelo a partir de «de baixo» (com movimento, como em «o barulho vem de baixo», por oposição a debaixo, meramente locativo, como acontece em «está debaixo») e «por baixo», porque destas locuções não se deduz "até baixo".

A consulta de um corpus histórico (Corpus do Português, de Mark Davies) permite concluir que «até cima» tem ocorrências mais antigas – do século XVI em adiante – do que «até acima» – apenas atestado a partir do século XIX.

Mesmo assim, dificilmente se conclui daqui que «até cima» é hoje mais correto que «até acima», primeiro pela razão atrás exposta e, depois, porque a associação de até a acima tem história de uso, mesmo no âmbito literário.

Pergunta:

Na designação de instituições com o nome de um patrono, aceitam-se como corretas, por exemplo, «Hospital de Egas Moniz», em vez de «Hospital Egas Moniz»?

Resposta:

A inclusão da preposição de é opcional, quando o nome classificador da instituição ou serviço (e das respetivas instalações – geralmente um edifício) é identificado por um nome próprio de pessoa. Diz-se e escreve-se corretamente «Hospital Egas Moniz», mas também é legítima a denominação «Hospital de Egas Moniz», que é, aliás, a forma por que este equipamento se apresenta em páginas oficiais da Internet.

A questão da presença ou omissão da preposição em nomes de arruamentos e instalações a que se associam nomes próprios suscitou alguma discussão em Portugal, entre os gramáticos de tradição prescritiva, sobretudo durante a primeira metade do século XX. É o caso de Vasco Botelho de Amaral (1912-1980), que, focando os nomes de ruas, dedicou ao tema dois artigos importantes no Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (1958). Com bons argumentos e apoiado noutros autores da gramática prescritiva, Botelho de Amaral aceitava como corretas ambas as construções – com e sem preposição –, observando [ibidem, s.v. "De (sua omissão)"; mantém-se a ortografia do original]:

«Tem-se discutido muito sobre como será melhor escrever: Rua Luís de Camões, ou Rua de Luís de Camões. A prática da supressão do conectivo de está muito divulgada, sobretudo quando o substantivo determinante é nome de rua, praça, largo, avenida, livraria, escola, colégio, liceu, teatro, hotel, pensão, café, etc. [...]

O autor apoia-se no funcionamento do latim, língua em se associava ao classificador (rio, cidade, terra) o nome próprio como aposto, ocorrendo os dois termos no mesmo caso gramatical: dizia-se, portanto, urbs ...

Pergunta:

Referente aos antropônimos germânicos terminados em -ulfo, há alguma prescrição para que sejam registrados sem acento? Ou será que deveríamos utilizar? Me intriga, pois já me ocorreu de notar casos de uso e desuso do acento, muitas vezes no mesmo nome.

Lembro-me imediatamente de Ataúlfo, o segundo rei visigótico conhecido, cujo nome é relativamente bem documentado com acento, embora haja oscilação (vide verbete Decadência e Queda do Império Romano no Ocidente, na Infopédia, que oscila entre ambos no mesmo texto).

Há, claro, os casos de adaptação com -o-, como Rodolfo, mas é uma incógnita para mim acerca dos muitos -ulfos conhecidos, sobretudo dos fins da Antiguidade e Idade Média.

A título de comparação, alguns destes germânicos citados em grego são acentuados (cf. Αριούφος; Ἰνδούλφος; Αταούλφος).

Agradeço de antemão.

Resposta:

A prescrição existente é a que decorre da ortografia e encontra-se formulada no n.º 2 da Base X do Acordo Ortográfico:

«As vogais tónicas/tônicas grafadas i e u das palavras oxítonas e paroxítonas não levam acento agudo quando, antecedidas de vogal com que não formam ditongo, constituem sílaba com a consoante seguinte, como é o caso de nh, l, m, n, r e z: bainha, moinho, rainha; adail, paul, Raul; Aboim, Coimbra, ruim; ainda, constituinte, oriundo, ruins, triunfo; atrair, demiurgo, influir, influirmos; juiz, raiz, etc.»

Sendo assim, e atendendo aos casos de Coimbra e influirmos, em que as sequências -oim- e -uir- não têm acento gráfico e se pronunciam com hiato vocálico (-o-im-, -u-ir-), presume-se que Ataulfo também não tem de exibir acento, nem mesmo para evitar a leitura de au como ditongo. O mesmo acontece com outros antropónimos e topónimos com a mesma origem: Adaulfo, Atanaulfo, Farailde, Failde (cf. Revista Lusitana). Detetam-se de facto registos com acento, mas tudo indica que são ou erros ou gralhas.

Quanto às formas gregas referidas pelo consulente, não são elas relevantes para este caso, porque as regras ortográficas são bastante diferentes.

Sobre a análise etimológica de Ataulfo – que tem Adolfo como cognato (do alemão, pelo francês) e variantes na origem de topónimos como

Pergunta:

Gostaria de saber como é que a pronúncia do "e" átono, que era pronunciado como "i", passou a ser pronunciado como /ɨ/.

Também gostaria de saber se esse é um fenómeno que ocorre com todos os is átonos, e não somente os que derivam dum "e" átono.

Em galego-português, ou até mesmo no período pré-clássico, o "e" átono era registrado, na escrita, como um "i", devido a harmonização vocálica, processo que ainda acontece no Brasil, como é possível observar em palavras como "pepino" antes também escrita como "pipino", e até mesmo quando eram nasais, como em "mentir" (mintir), "mentira" (mintira), "ensinar" (insinar), que aparecem escritas assim até em Os Lusíadas.

Sempre me pergunto como é que uma mudança tão grande como essa foi "desfeita", e o "e" que tinha passado para um "i" é agora um "ɨ", e no caso das nasais, voltou a ser pronunciado como "e".

Resposta:

Não é seguro aceitar que o e átono era geralmente pronunciado como i no português anterior aos começos do século XVIII.

O que se infere é que à data do começo da colonização deveria existir importante variação no sistema de vogais átonas, oscilando entre a assimilação (processo que se conservou de certo modo no Brasil – daí, os casos de "minino" e "pipino") e o que já seria a neutralização vocálica que é hoje típica do português de Portugal1.

É também importante lembrar que os segmentos [i] e [ɨ] são ambas vogais altas e que, no contexto fonológico do português de Portugal, o [i] pode também encontrar-se em posição átona, eventualmente contrastando com [ɨ], em pares como rimar/remar (r[i]mar/r[ɨ]mar). Esta relação de contraste entre vogais com importantes afinidades não é inédita nas línguas do mundo e pode encontrar paralelo, por exemplo, no russo: entre o i que palataliza consoantes (muitas vezes grafado и, como em радио, «rádio») e o i que não opera esse fenómeno, realizável como [ɨ] (grafado ы como em волы, «bois»)2.

Não se trata, portanto, de uma «mudança tão grande», mas muito provavelmente de uma tendência que acabou por se tornar sistemática apenas no português de Portugal.

 

1 Sobre a pronúncia de -e átono final e e-/-e- pretónicos, ver Paul Teyssier, História da Língua Portuguesa, Edições Sá da Costa, 1982, pp. 57-63.

2 Ver "

Pergunta:

Enquanto estava a colaborar com uma imobiliária, surgiu uma dúvida linguística recorrente: qual é a forma correta?

«O imóvel fica EM Pousa» ou «O imóvel fica NA Pousa»?

Pousa é uma freguesia do concelho de Barcelos.

Existe alguma regra que deva ser aplicada em situações semelhantes?

Obrigado e bom trabalho para a equipa do Ciberdúvidas.

Resposta:

É possível dizer e escrever das duas maneiras, com uma diferença quanto ao nível de língua:

(1) «Vivo na Pousa.» – nível corrente, registo informal ou neutro.

(2) «Um novo posto de saúde abriu em Pousa.» – registo formal

É curioso verificar que na própria página da junta de freguesia de/da Pousa há oscilações.

Não há propriamente uma regra que permita prever infalivelmente o uso do artigo definido. Há, no entanto, critérios históricos: se o topónimo tem origem num nome comum, então costuma usar-se o artigo definido, como acontece com «o Porto» ou «a Póvoa de Varzim» ou, ainda, «a Fuzeta» (com provável origem em foz). Mas há numerosas exceções a este critério, como os Textos Relacionados apontam, por vezes no intuito de dar maior formalidade e prestígio ao uso do topónimo  – cf. «estou na Figueira da Foz» vs. «estou em Figueira de Castelo Rodrigo».

No caso de Pousa, é de esperar que o artigo definido fizesse parte do uso deste topónimo, pois é muito provável que este provenha do nome comum pousa, no sentido de «lugar onde se faz uma parada para descansar, depositando a carga» (Dicionário Houaiss; ver também o Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado). Contudo, como foi dito, também se registam usos sem artigo definido, plausivelmente, com a intenção de prestigiar este nome.