Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Beijoca: de onde vem a terminação da palavra em si?

Li em alguns dicionários impressos que é beijo + -oca ou derivação regressiva do verbo beijocar...

Mas não é assim que funciona a etimologia em casos desse tipo! Não tenho a completa razão com isso?

Por favor, muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

Beijocar é um verbo derivado de beijoca. Por sua vez, beijoca deriva de beijo, pela sufixação de -oca.

O sufixo -oca «ocorre como diminutivo (às vezes, como aumentativo não raro com valor afetivo, às vezes com valor pejorativo), quase sempre no feminino» e «quando não, como feminino de -oco /ô/» (Dicionário Houaiss). Exemplos: perna > pernoca; banho > banhoca; dorminhoco/dorminhoca. O sufixo -oco, com -oca, remonta ao sufixo -occus, do latim hispânico.

Note-se que há palavras com a terminação -oca com outra origem, no elemento de origem tupi -poca, – associado ao significado de «barulhento, ruidoso, estridente» e que se regista «do sXVI em diante: anhumapoca, anhupoca, araçaripocaarapoca [...]» (ibidem). O Dicionário Houaiss acrescenta ainda que -oca desenvolve «modernamente, no Brasil, certa conotação diminutivo-depreciativa ou afim, normalmente no feminino, mas ocasionalmente comum de dois gêneros»; exemplos: beiçoca, beijoca, belezoca, boboca, ...

Pergunta:

Qual a maneira correta de escrever o nome desse município baiano, "Xique-xique" ou "Xique-Xique"?

Resposta:

Deve escrever-se Xique-Xique, conforme o registo do Vocabulário Onomástico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras.

A forma Xique-Xique, nome de uma cidade do estado da Bahia, é igualmente a que consta do portal da prefeitura desta cidade e das páginas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (em 2018).

O Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, consigna a forma "Xiquexique" – que não parece ter uso –, relacionando-a com o nome comum xiquexique, de origem obscura, talvez tapuia, e que tem vários significados, mas que ocorre como «designação comum a vários subarbustos ou ervas lenhosas do gênero Crotalaria, da família das leguminosas, subfamília papilionoídea, que ocorrem, em sua maioria, no Brasil e são frequentemente uasadas como adubo verde» (Dicionário Houaiss). Observe-se, porém, que esta etimologia requererá uma pesquisa mais aturada, de modo a compreender como uma planta, neste caso, um arbusto, pôde motivar o nome de um núcleo de povoamento.

Pergunta:

Já ouvi vários professores de Português para estrangeiros explicarem que o R carregado é gutural e comparam-no com o castelhano dizendo que este não o é. Inclusive tenho visto videos no YouTube a exemplificarem como se deve pronunciar o tal erre gutural.

Também uma minha professora de inglês que dava aulas de português para estrangeiros me explicou que muitos dos seus alunos não conseguiam fazer o tal erre (gutural). Ou seja, ela ensinava esse erre como o R português de referência.

Para mim esse erre é um regionalismo que tem crescido em Lisboa e nos meios de comunicação social. Para mim o R é alveolar. Estou errada?

Obrigada

Resposta:

O erre em causa é historicamente uma consoante vibrante múltipla apical (também se diz alveolar), mas hoje é cada vez mais frequente pronunciá-lo como erre "gutural", isto é, como vibrante múltipla uvular ou velar.

Trata-se de duas formas de pronunciar o chamado "r forte", que estão corretas. O "r forte" – o que ocorre em rato e carro, portanto como consoante que começa sílaba (ataque silábico) – é historicamente uma vibrante múltipla apical (isto é, o ápice da língua vibra contra os alvéolos dentais). Isto mesmo é confirmado por Paul Teyssier, na sua História da Língua Portuguesa (Edições Sá da Costa, 1982; mantém-se a ortografia do original):

«O português sempre possuiu, como o espanhol, uma oposição fonológica entre um /r/ brando (uma vibração) e um /r̄/ forte (várias vibrações em posição intervocálica; ex.: caro e carro. Nas outras posições existe na língua apenas um fonema, relaizado como [t] (ex.: três, parte) ou como [r] (ex.: ramo, melro, genro, Israel). Até uma data recente o ponto de articulação era, nos dois casos, apical: aponta da língua batia uma vez para [r] e várias para [r̄]. É a pronúncia actual do espanhol. No decorrer do século XIX, porém, surge uma articulação uvular do [r̄] forte, bastante semelhante à do francês, embora mais apoiada. Alguns falantes chegam a realizar esta consoante como constritiva velar surda, muito próxima do jota espanho. O [r] simples, ou brando, mantém a sua articulação apical. Em 1883, Gonçaves Viana assinala em Lisboa a nova articulação do [r̄]; considera-a, no entanto, variante individual. Em 1903, o mesmo foneticista observa que ela "se espalha progressivamente pelas cidades", mas ...

Pergunta:

Será possível ao Ciberdúvidas saber se a origem da palavra cara-metade (um dos cônjuges em relação ao outro) é mitológica?

E em que circunstâncias entrou este substantivo na língua portuguesa? Não encontrei respostas a estas questões em nenhum dicionário que consultei.

Ainda sobre esta designação, será o português a única língua que tem esta palavra formada de cara + metade?

Exemplos: inglês, better half; francês, ma moitié1, âme sœur; espanhol, alma gemela; italiano, anima gemella, etc.

 

1 Ver "Âme soeur" na Wikipédia e "Ma moitié" em Omnilogie

Resposta:

A palavra cara-metade não é uma criação portuguesa. Na verdade, terá surgido em contexto erudito, talvez de língua francesa, donde passou ao castelhano e ao português. É também muito provável que a expressão reflita certa visão mitológica sobre o par amoroso ou conjugal.

Apesar dos registos dicionarísticos1, as entradas de cara-metade não facultam informação histórica. Sendo assim, impõe-se a pesquisa em coleções textuais que abranjam várias épocas, como é o caso do Corpus do Português (Mark Davies), cuja secção histórica permite observar que a atestação mais antiga é de 1845, de uma obra intitulada As Casadas Solteiras, do escritor brasileiro Luís Carlos Martins Pena (1815-1848):

(1) «Ora, já não posso aturar a minha cara-metade. O que me vale é estar ela há mais de duzentas léguas de mim.»

Contudo, importa assinalar que, em espanhol, se regista a expressão equivalente cara mitad, por exemplo, no dicionário da Real Academia Espanhola (DRAE). O significado é o mesmo que em português, como confirma Xavier Pascual López (Fraseología española de origen latino y motivo grecorromano, Universidade de Lérida, 2012, p. 239)2:

«Asimismo, se documenta la locución nominal cara mitad (‘marido o mujer, consorte’, DRAE s. v. mitad), en la que se reproduce [la imagen de un único ser (esférico, icono de la perfección) dividido en dos partes que, aunque puedan encontrar parejas similares, sólo pueden encajar con su mitad originaria] y cuyo sentido se restringe al matrimonio, incidiendo – conforme también a la moral cristiana – en que la pareja con...

Pergunta:

Qual é o feminino de mestre-escola?

Muito obrigada desde já.

Resposta:

Dado que é legítima a forma mestra como feminino de mestre (cf. Vocabulário da Língua Portuguesa, 1966, de Rebelo Gonçalves, e dicionário da Academia das Ciências de Lisboa), o feminino será mestra-escola, forma que é confirmada pelo Dicionário Priberam.

O termo mestre-escola constitui uma denominação antiga para um professor do 1.º ciclo do ensino básico (antes chamado «ensino primário»).