Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Uma dúvida me assola: no Brasil, é muito estendido o uso da expressão «que nem» no lugar de como. Ex.: «Ele cozinha que nem o pai» / «o teclado se toca que nem piano». Há anos procuro entender a origem dessa expressão, pois me parece estranha e até mesmo incongruente. Na canção "Sebastiana", de Gal Costa (1969)[*], há a frase «(...) pulava que nem uma guariba». Mas em outras gravações se substitui a expressão por «que só», o que para mim soa mais lógico, no sentido de "como apenas". Seria esse o caminho etimológico da expressão? Existem registros históricos de maior importância? Por favor ajude-me a solucionar esse mistério!

[*] N. E. – "Sebastiana" é uma composição de Rodil Cavalcanti (1922-1968) e foi interpretada pela primeira vez, em 1953,  por Jackson do Pandeiro (1919-1982), com enorme êxito .

Resposta:

A expressão «que nem» é bastante antiga na língua portuguesa:

1. «Isto consola que nem o copo de água que a gente, em dias de calma, pede à borda da estrada, quando se leva a boca seca e queimada da poeira!» (Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais, 1868, in Corpus do Português).

Trata-se de uma «expressão comparativa (como) usada na linguagem coloquial» (Maria Helena de Moura Neves, Guia de Uso do Português, Editora UNESP, 2003).

Quanto à suposta incongruência da expressão, é possível pensar o contrário, se aceitarmos que a expressão se relaciona historicamente com uma construção consecutiva que, por elipse, fica com alguns dos seus elementos subentendidos (os parênteses assinalam a informação omissa):

2. Ela pula que nem uma guariba. = Ela pula (de tal maneira) que nem uma guariba (pula assim).

A construção ter-se-á fixado (gramaticalização), associando-se-lhe um significado comparativo: «ela pula que nem uma guariba» = «ela pula como uma guariba não pula» (contextualmente, depreende-se «ela pula melhor/mais que uma guariba»). Daqui, a construção ganhou valor super...

Pergunta:

Por que a ortoépia indicada para o substantivo "obséquio" é /zé/ enquanto, para "subsídio", se indica /sí/?

Agradecido por vossa atenção.

Resposta:

Parece desconhecida a razão dessa pronúncia, que é tida como correta, mas sabe-se que ela é bastante antiga, conforme se dizia Vasco Botelho de Amaral, no Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, de 1958 (mantém-se a ortografia original):

«Obséquio e derivados. Há quem profira afectadamente obcéquio, mas a pronúncia normal determina que o s se leia como z [...] Em certo documento de 1742 [...] vimos que já vem escrito: "Em obzequio de Cezar compunha Virgílio o seu poema..." Evidentemente, a grafa deve ser com s, pois assim exige o latim – obsequiu –, mas aquela escrita revela que a prosódia com z não é recente [...].»

Pergunta:

No dicionário de verbos portugueses da Porto Editora – 1.ª edição, de 1999, pág.687 –, a regência indicada para o verbo abalroar é com. E dão um exemplo de frase: «O navio de passageiros abalroou com a traineira». Há muito que 'adoptei' (e sou 'gozado' por isso) essa regência. Contudo, por todo o lado e especialmente na imprensa, ouvimos notícias do género: «O autocarro abalroou o táxi'» A minha questão é: não se deveria dizer , antes, «O autocarro abalroou com o táxi»?

Com os meus melhores cumprimentos e antecipados agradecimentos pela resposta,

 

 

Resposta:

O verbo abalroar (que significa «ir um barco, um veículo, de encontro a outro ou ir bater contra um obstáculo») ocorre frequentemente sem preposição:

– «O navio abalroou um pequeno veleiro.» (exemplo do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa)

Também se atesta o uso deste verbo com regência, que pode realizar-se com a preposição com ou contra:

– «Nadando com os olhos abertos, lá foi abalroar com o homem» (Camilo Castelo Branco, Anos de Prosa, pág. 229, in dicionário da ACL)

– «Leonel falou das caravelas, que [...] abalroavam contra os traiçoeiros rochedos do mar vingativo.» (Winfried Busse, Dicionário Sintático de Verbos Portugueses, Livraria Almedina 1994)

Em conclusão, a frase «o autocarro abalroou com o táxi» está correta, mas a regência que ela ilustra não é a única possibilidade de uso do verbo em questão.

Por outras palavras, «o autocarro abalroou» é outra opção correta, que se revela até mais acessível à intuição.

Pergunta:

Gostava de ter um comentário a estes quatro títulos de jornal, um deles, o primeiro, de hoje mesmo, no Correio da Manhã.

Há menos médicos a pedirem a reforma.

Há menos pessoas e empresas a entrar em insolvência.

Há menos famílias sobre-endividadas a pedirem apoio à Deco.

Há mais pessoas a pedir ajuda por sofrerem agressões dos filhos.

A mim parece-me que o correto seria «há menos médicos a pedir a reforma». Mas numa busca na Internet parece que há títulos idênticos para vários gostos [...].

Obrigado pela atenção.

Resposta:

Todos os exemplos estão corretos.

A construção a + infinitivo permite formar uma oração subordinada adjetiva reduzida de infinitivo (ver Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, p. 608), na qual o verbo pode concordar com o nome a que se refere (o seu antecedente). Exemplo (idem, ibidem):

1. «Mas a visão, logo se desvaneceu, ficando apenas os vidros,/ a ocultarem, com o seu brilho, o/ que lá dentro existia» (Ferreira de Castro, Obra Completa, Rio de Janeiro, Aguilar, I, 136).

Em 1, o infinitivo (flexionado ou pessoal), que tem função descritiva, está no plural, a concordar com o plural vidros. Não se julgue, porém, que a concordância é obrigatória – não é, como se verifica pelo seguinte exemplo (idem, ibidem):

2. «Quando me lembra tudo isto; quando vejo os conventos em ruínas, os egressos/ a pedir esmola/ e os barões de berlinda, tenho saudade dos frades – não dos frades que foram, mas dos frades que podiam ser» (Almeida Garrett, Obras de Almeida Garrett, Porto, Lello e Irmão, 1966, I, 63).

Sendo assim, a respeito de todos os títulos em dúvida, são gramaticais quer o infinitivo sem concordância (infinitivo não flexionado ou impes...

Pergunta:

A frase «O senhor João compromete-se a cumprir as regras no que diz respeito ao conteúdo do equipamento, que lhe é fornecido pela empresa, bem como a não estragá-lo ou transferi-lo», uma construção que é muito comum, mas, a meu ver. está errada. Ela não deveria terminar com «bem como a não o estragar ou [a não o] transferir»?

Este exemplo que apresento acima é um erro, a respectiva construção é facultativa, ou é a única solução possível? Indico mais dois exemplos.

Para mim, o  correcto (e única solução possível) seria:

«O serviço pode ajudá-lo a melhorar a sua empresa.»

Para mim, incorrecto (deveria ser «para o ajudar»):

«Oferece um conjunto de serviços para ajudá-lo a melhorar o desempenho.»

Muito obrigada.

Resposta:

Com infinitivos precedidos de preposição, o pronome pessoal átono (clítico) pode geralmente ocorrer em posição pré-verbal ou pós-verbal, mesmo que o verbo seja modificado por não1. Na minha opinião, são, portanto, corretas frases como as seguintes:

1.  «O senhor João compromete-se a não o estragar ou transferir.»

2. «O senhor João compromete-se a não estragá-lo ou transferi-lo.»

Note-se que, em certos casos, pode ser preferível a ênclise (o ? indica dúvidas quanto à aceitabilidade da frase):

3.  «Compromete-se a consertá-lo.»

4.  ?«Compromete-se a o consertar.»

A frase 4 estaria, em princípio, correta, mas, à intuição, revela-se menos natural ou habitual, por causa do encontro vocálico «a o».

Assinale-se, contudo, que outras palavras de valor negativo que não sejam o advérbio de negação não parecem impor a próclise quando ocorrem em posição pré-verbal (Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pp. 2279-2282):

5. «Comprometeram-se a nunca o consertar.»

6. «Comprometeram-se a nada lhe consertar.»

 

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