Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Penso que a forma correcta de nos referirmos a algo que acontece inúmeras vezes é «vezes sem conto». No entanto, vejo ser cada vez mais utilizada a expressão «vezes sem conta». Qual é a forma correcta?

Obrigado.

Resposta:

As locuções «sem conta» e «sem conto» são formas corretas e são sinónimas.

A expressão «sem conta» é correta, tendo grande tradição na língua portuguesa. Por exemplo:

1. «Entro em casa no dia seguinte, às oito horas, depois de ter vindo escutar os rumores de dentro, vezes sem conta, à fechadura» (Fialho de Almeida, Os Gatos in Corpus do Português).

Mas também é legítimo o uso de «sem conto» associado a «vezes», como atesta a seguinte frase do escritor português José Rodrigues Miguéis (1901-1980):

2. «Mas a visão repete-se vezes sem conto» (José Rodrigues Miguéis, Páscoa Feliz, 1932, idem).

Encontra-se o registo de «vezes sem conta», por exemplo, no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (como subentrada de conta) e no Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho. «Sem conto» também figura no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (como subentrada de conto).

Pergunta:

Deparei-me com o que julgo tratar-se mesmo de um erro de concordância verbal na revista do semanário Expresso de 10 de setembro [de 2016].  É esta frase, na crónica de Clara Ferreira Alves (Nós por cá todos bem):

«(...) Não temos futuro. Quatro em cinco jovens está disposto a emigrar. (...)»

Obviamente que devia ter sido escrito «Quatro em cinco jovens estão dispostos a emigrar». Estou certo?

Resposta:

Com efeito, trata-se de um erro de concordância, porque a frase em questão deverá ser a seguinte: «Quatro em cinco jovens estão dispostos a emigrar.»

A justificação é simples: o sujeito da frase é «quatro», o que significa que se trata de uma pluralidade, e o verbo pluraliza, bem como o adjetivo disposto, observando-se assim as regras gerais da concordância verbal e adjetival.

N. E. (19/09/2016) – Um consulente (Diogo Lourenço, que nos contactou pelo Facebook) considera que a concordância no singular está correta, porque «quatro em cinco» corresponde a 4/5 («quatro quintos») e, portanto, é menos que 1 («um»). É uma posição, no mínimo, muito discutível, porque as regras de concordância e a categoria de plural se enquadram numa perspetiva linguística, não referindo diretamente entidades matemáticas. Assim, no plano da concordância verbal, o verbo ocorre no plural, de acordo com as regras gerais, sempre que, num número fracionário, o número cardinal (o numerador) que designa o número de partes da unidade (o denominador) seja superior a um. Refira-se que não encontramos esta regra explícita nas gramáticas a que temos acesso; no entanto, para referir, por exemplo, a de Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, pág. 368), vemos que estes autores, não abordando diretamente a concordância com números fracionários, facultam exemplos – «três quintos» e «quinze avos» – que evidenciam o comportamento de quinto e avo como substantivos pluralizáveis, quando os números fracionários são verbalizados e, portanto, lidos ou escritos por extenso. Se o cardinal (três, quinze) que quantifica as partes da unidade fica associado ao plural de substantivos (

Pergunta:

Na revista do semanário Expresso de 10 de setembro [de 2016], deparei-me com estas dúvidas, que vêm logo na capa:

«Meninos prodígio
Quatro fora de série de palmo e meio».

E, depois, no título da peça:

«Meninos que brilham (...)
São fora de série».

Pergunto:

1)  Em «meninos prodígio» não faltou o hífen? Não é o mesmo critério, por exemplo, com escola(s)-modelo, navio(s)-escola ou contrato(s)-promessa, por exemplo?

2) «São fora de série», ou «são foras de série»? Nos vários registos, na Internet e aqui no Ciberdúvidas, tendo em conta até a similitude com a locução «fora de jogo», não encontrei uma resposta concludente.

Os meus agradecimentos.

Resposta:

1. Geralmente, as sequências de dois substantivos que funcionam globalmente como um grupo nominal, muitas vezes funcionando na globalidade com um significado específico, são hifenizadas. No caso em questão, não há dúvida, porque até está dicionarizado: escreve-se menino-prodígio com hífen, palavra que aceita dois plurais – meninos-prodígios e meninos-prodígio (cf. Dicionário Houaiss; ver também os vocabulários ortográficos mais recentes, entre eles, o Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa).

2. Quanto à locução «fora de série»1, diga-se que, embora usada adjetivalmente, não tem plural, uma vez que se trata de um composto cujo núcleo é constituído por uma locução prepositiva (fora de), que, como tal, é invariável, como acontece com as locuções fora da lei ou fora de jogo2 (cf. Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, vocabulário ortográfico da Porto EditoraVocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras). 

1 Antes da aplicação do acordo ortográfico de 1990, deveria escrever-se com hífenes, conforme o caso de fora-de-jogo (Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua Portuguesa, 1966).

2 Observe-se, porém, que há fontes que registam o plural de fora de jogo (Vocabulário Ortográfico do Português, Portal da Língua

Pergunta:

Tenho em mãos um livrinho sobre horticultura. Trata-se de um texto especializado que fala em estufas-frias e estufas quentes... E muitas vezes a par... Grafo como composta "estufa-fria", e «estufa quente» sem hífen... Mas balanço sempre a olhar para elas sobretudo seguidas...

Que me dizem?

Resposta:

Há registos de estufa-fria em alguns dos vocabulários ortográficos que aplicam o Acordo Ortográfico de 1990 (AO)* (não nos que seguiam a anterior norma, de 1945), mas nada consta sobre «estufa quente». Atendendo ao hífen de estufa-fria, justifica-se grafar estufa-quente**, com hífen, mas esta forma não pode considerar-se a única correta, porque há muitas locuções formadas por nome + adjetivo que não têm hífen, apesar de funcionarem como palavras simples (não tem isto que ver com o AO, pelo menos, não de maneira direta): «máquina registadora», «polícia sinaleiro»**. Ou seja, o sintagma «estufa quente», não hifenizado, é legítimo, pelo menos, até um vocabulário ortográfico ou dicionário com autoridade reconhecida optarem por fixar a sua entrada como estufa-quente.

* Cf. o  vocabulário ortográfico da Porto Editora (na Infopédia) e o Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua Portuguesa (Academia das Ciências de Lisboa). Estufa-fria não tem entrada no Vocabulário Ortográfico do Português (Portal da Língua), nem no 

Pergunta:

Durante as férias, enquanto lia Kafka, deparei com esta frase que me deixou sobressaltado, não se desse o caso de que não soubesse que fazer, sequer dizer, quanto à concordância. Senão, vejamos: «As crueldades que está na sua natureza eles cometerem.» A fim de que resolvesse esta incongruência, primeiro, elaborei outra frase que pretendia análoga: «Está na sua natureza eles cometerem crueldades.» Não considerei pertinente, pois, introduzir o determinante artigo definido feminino plural.

Obrigado.

Resposta:

A sequência apresentada, que está correta, não é uma frase, mas, sim, um grupo nominal:

1. «As crueldades que está na sua natureza eles cometerem.»

A descrição da sequência em 1 não será das mais acessíveis a uma análise gramatical no contexto escolar de nível básico ou médio. Mesmo assim, diga-se que, nessa sequência, o pronome relativo que (que tem por antecedente «crueldades») desempenha a função de complemento direto de uma oração subordinada substantiva completiva de infinitivo – «cometerem...» –, a qual está contida (ou encaixada) na oração subordinada adjetiva relativa restritiva «que está na sua natureza [eles cometerem]» (os parênteses retos destacam o encaixe dessa subordinada substantiva completiva). Tal oração subordinada completiva tem a função de sujeito no contexto da oração relativa, função que se torna mais evidente, se considerarmos que a oração relativa «que está na sua natureza cometerem» pressupõe a seguinte frase simples, que retoma na ordem direta a que o consulente apresenta:

2.  «Eles cometerem crueldades está na sua natureza.»

Em 2, «cometerem crueldades» é sujeito, e «está na sua natureza» é o predicado. Repare-se que – como o consulente bem nota – não se determina «crueldades», isto é, em 2 emprega-se o substantivo sem associar o artigo definido; este aparece em 1, é certo, mas a marcar uma operação de determinação que ocorre depois da construção relativa.

De qualquer modo, compreende-se a estranheza do consulente, a qual talvez advenha de esta possibilidade de uma relativa que contém uma completiva aparecer geralmente exemplificada nas descrições linguísticas com completivas que têm a função de complemento direto e apresentam o verbo numa forma finita, como no seguinte exemplo:

3. «São múltiplas as crueldades que vemos que cometem.»