Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A expressão «inspirar às golfadas» existe? Os dicionários definem «golfada» como um jorro de vómito ou de líquido, mas julgo ter ouvido a expressão «inspirar às golfadas» no sentido de respirar sofregamente, em aflição. A expressão é correcta? E, se não é, há alguma que seja do nosso uso?

Muito obrigado.

Resposta:

A expressão em apreço está correta, porque é possível associar golfada não só a matéria líquida mas também ao ar que se respira.

Relaciona-se geralmente golfada, que significa «jorro, jato, vómito», com a ideia de líquido, e por isso ocorre a palavra frequentemente com outras como sangue, por exemplo, na expressão «golfada de sangue» ou em «sangue às golfadas» (ver dicionário da Academia das Ciências).

Contudo, a expressão «às golfadas» pode também ser associada à noção de ar, o que permite dizer que «se respira (ar) às golfadas», que «se inspira (ar) às golfadas», além de existir «ar às golfadas» ou de haver «golfadas de ar». Encontram-se exemplos deste uso na literatura:

1 – «Mas, neste naufrágio que agora contemplo na minha imaginação, vejo alguns homens varridos pelas ondas, atirados pela borda fora, amaldiçoando o mar antes de morrerem com os pulmões cheios de água. Avidamente inspiram umas últimas golfadas do ar que agitadamente os mata. O barco tem o leme partido, as velas esfarrapadas, um mastro derrubado» (Maria Isabel Barreno, O Senhor das Ilhas, 1994, in Corpus do Português).

2 – «Leu toda a noite, sentado aos pés da cama, respirando a largas golfadas, com a delícia de quem sai de um cárcere, a atmosfera que o envolvia, feita das emanações de Ideal, exaladas daqueles volumes românticos» (Eça de Queirós, A Capital, idem).

Também no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa há atestação desse uso:

3 – «um projector enorme acendendo-se e apagando-se cont...

Pergunta:

Tenho recebido [algumas mensagens de correio eletrónico] que, após o cumprimento inicial, começam com o verbo no infinitivo. Parece-me incorrecto, mas a colega diz que aprendeu assim na faculdade. Por exemplo:

«Boa tarde.

Dizer que já recebi as fichas de avaliação de todos os elementos do departamento. (...)»

Está correcta esta frase, ou outras como esta? Já tentei pesquisar, mas apenas encontro referência a casos de língua inglesa.

Obrigada.

Resposta:

Trata-se efetivamente de um uso que a norma-padrão não legitima. No caso de «dizer que já recebi as fichas...», não se trata do infinitivo que ocorre em textos instrucionais (por exemplo, «carregar no botão vermelho»), mas, sim, de uma maneira abreviada (elíptica) de dizer o mesmo que «falo/escrevo só para dizer que...», estrutura declarativa em que o infinitivo ocorre como elemento subordinante de uma oração subordinada substantiva completiva («que já recebi as fichas...»). Existe uma construção paralela em espanhol, que nesta língua também não se aceita, como se pode confirmar por um comentário do portal Fundéu.

Pergunta:

Em:

a) Calças de ganga;

b) Bolo de chocolate.

Qual a função sintática de «de ganga» e «de chocolate»? Em ambos os casos estamos perante um complemento do nome?

Grata pela atenção.

Resposta:

Tradicionalmente, trata-se de complementos de matéria, mas, na perspetiva do Dicionário Terminológico (DT), destinado a apoiar em Portugal o estudo da gramática nos ensinos básico e secundário, não fica clara a função destes constituintes. Será preciso consultar uma obra exaustiva, como é o caso da Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 1065). Nesta fonte considera-se que casos como os de «de ganga» e «de chocolate» são sintagmas preposicionais classificadores, uma subclasse estrutural que parece ficar a meio caminho entre os complementos do nome* e os modificadores do nome.

* No contexto do ensino não universitário e tendo ainda em atenção o DT, pode afigurar-se prudente focar o estudo do complemento do nome na análise dos nomes deverbais que são geralmente reconhecidos com facilidade por se relacionarem com verbos transitivos, conforme, aliás, o próprio DT exemplifica: «[A construção [do edifício]] parece-me difícil. ([do edifício] é complemento do nome "construção" no grupo nominal [a construção do edifício])»

Pergunta:

Ao consultar obras de referência, verifico uma oscilação na regência de adornar. Pergunta: devemos escrever «A cama está adornada com veludo», ou «A cama está adornada de veludo»?

Muito obrigado, e parabéns pelo vosso trabalho.

Resposta:

O caso em questão apresenta oscilações que decorrem da sintaxe frásica.

A frase em questão apresenta uma construção passiva que inclui um verbo – adornar – que permite dois esquemas na voz ativa: (i) alguém adorna alguma coisa com alguma coisa; (ii) alguma coisa adorna alguma coisa.

As passivas correspondentes são: (iii) alguma coisa é/foi/está adornada (por alguém) com alguma coisa; (iv) alguma coisa é/foi/está adornada por alguma coisa. Na passiva em (iii), o constituinte «com alguma coisa» tem valor instrumental e, portanto, ocorre introduzido pela preposição com (cf. «decorei a árvore com bolas de Natal»), o que legitima «a cama está adornada com veludo» (na frase, omite-se o agente da passiva, sobretudo se a passiva for de estado ou de resultado: «X está adornado com Y»). Em (iv), figura a preposição por, a qual introduz o agente da passiva [cf. uso ilustrado por (ii)] – não é propriamente um uso preposicional classificável como regência]. Note-se que a preposição por pode ser substituída pela preposição de na passiva.

Em suma, as oscilações que se apontam na pergunta decorrem mais das preposições que introduzem certos grupos frásicos do que de preposições que sejam selecionadas pelo verbo adornar e pelo seu particípio passado adornado.

Pergunta:

Como se deverá escrever: «rio Tejo», ou «Rio Tejo»? «Ribeira das Vinhas», com maiúscula inicial em ribeira, ou «ribeira das Vinhas»?

Resposta:

Desde os anos 40 do século passado, os «substantivos que significam acidentes geográficos, tais como arquipélago, baía, cabo, ilha, lago, mar, monte, península, rio, serra, vale [...]» são escritos com minúscula inicial, «quando seguidos de designações que os especificam toponimicamente» (Rebelo Gonçalves, Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, Coimbra, Atlântida Editora, 1947, p. 337).1 Este critério ainda é válido: muito embora o Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90) seja omisso a respeito do procedimento a adotar com este tipo de substantivos, verifica-se que, na bibliografia linguística mais recente, se recomenda a minúscula inicial nesse tipo de palavras. Com efeito, a Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 1020), considerando que não existe regra fixa, propõe que, como convenção, os nomes a que chama «classificadores toponímicos» – os quais são o mesmo que «substantivos que significam acidentes geográficos», conforme a denominação cunhada por R. Gonçalves – se grafem com minúscula inicial quando fazem parte de nomes de rios. Sendo assim, «o Tejo» é equivalente a «o rio Tejo», no qual a palavra rio figura com minúscula inicial. Não haverá, portanto, regra fixa, no quadro do AO 90, mas afigura-se legítimo que, por enquanto, se recorra aos crit...