Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
405K

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho-me deparado com uma expressão que não conheço e não consigo compreender. Sempre usei «vergonha alheia», num sentido que agora vejo ser usado por algumas pessoas como «vergonha reflexa». Será que me pode explicar se estas expressões estão correctas ou qual a diferença entre elas, se é que a segunda existe sequer?

Obrigada.

Resposta:

Não encontro registo dicionarístico da expressão «vergonha alheia», mas reconheço que a expressão se usa ou já se usou mais para referir a vergonha que se sente pelo comportamento ou pela apresentação de outrem. Noutras fontes, é possível encontrar a expressão quer em textos portugueses quer em textos brasileiros, por exemplo nos corpora da Linguateca (mantém-se a ortografia original):

1 –  «Ou melhor o que me fez sentir uma puta vergonha alheia dela e o jeito que Malu conta parece piorar a situação...»

2 – «A mãe Ângela Cristina é a personagem mais engraçada do livro, suas cenas são sempre as mais legais, passei tanta vergonha alheia lendo esse livro.»

3 – «Confundir irreverência com sensacionalismo e imbecilidade, como bastas vezes aconteceu ao longo da primeira emissão com o inestimável e prestimoso auxílio daquele clown madeirense que em tempos foi conhecido pelo "Barão do Quebra-Costas" e que hoje lidera o Governo regional, deixa no espectador a desagradável sensação de passar por vergonha alheia

4 – «A princípio lhe dava coisa, uma certa vergonha alheia, mas pouco a pouco ele foi se acostumando aos amigos de José e começou a apitar os partidos de voley dos campeonatos promovidos pelo Grupo Gay de Madri.»

Quanto a «vergonha reflexa», também não encontro registos lexicográficos, mas depreendo que significa o mesmo que «vergonha alheia» pela informação disponível numa página da Internet. Ocor...

Pergunta:

Usa-se a expressão «ao início», ou «no início»? Por ex.: «No início ele ficou com dúvidas...», ou «Ao início ele ficou com dúvidas...» (eu digo sempre «no princípio ele ficou com dúvidas...»)? Não uso normalmente a palavra início, mas agora ouço muito este termo, tal como ouço «no final». Por ex.: «No final do mês eu informo-te...» Para mim será «no fim do mês». [...] Será que me pode tirar esta dúvida?

Resposta:

Os usos em causa são casos de variação, legítimos à luz da norma.

As fontes portuguesas consultadas (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa e o Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho) registam «de início», no sentido de «ao princípio» e «no começo». A expressão «de início» apresenta variantes que provavelmente decorrem da analogia com variantes das expressões suas sinónimas: «ao início», «no início»; «ao começo», «no começo», «de começo»; «no princípio», «ao princípio». Assinale-se, porém, que, entre alguns doutrinadores normativos, tem havido por vezes comentários reprovadores do uso de início e iniciar como sinónimos de começo e começar. Mesmo assim, entre outros normativistas, existe há muito a opinião de que não há razão para condenar o uso de início ou iniciar nessas aceções; foi o caso de Vasco Botelho de Amaral (Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, 1958, p. 176; mantém-se a ortografia do original):

«Iniciar. Não assiste razão aos que o refutam na acepção de começar, principiar, dar começo, dar princípio, etc., que evidentemente podem variar o estilo. Aliás, o próprio começar é provável que derive de cum initiare, *cominitiare, e, portanto, no mesmo sinónimo entra o verbo criticado. A forma ar...

Pergunta:

Quando me refiro à cor azul anil, devo escrevê-la com hífen?

Obrigada!

Resposta:

Em princípio, basta anil, porque esta palavra, por si só, já significa «certa tonalidade de azul» (Dicionário Houaiss), mas se a palavra tiver de estar associada a azul, então, justifica-se o hífen: azul-anil.

A palavra anil pode usar-se sozinha, para designar certa tonalidade de azul: «céu anil». Mas atesta-se a sua associação a azul, por exemplo, sem hífen: «diz-se de certa tonalidade de azul. Ex.: "janelas de cor azul anil"» (Dicionário Houaiss, 2009). No entanto, este exemplo de não hifenização é discutível, quando, para designar diferentes tonalidades de azul, se empregam compostos em que azul é nome ou adjetivo seguido de outro nome ou adjetivo; e estes casos exibem hífen: azul-marinho (azul + adjetivo), azul-seda (azul + nome), azul-turquesa (idem), azul-violeta (idem). Sendo assim, afigura-se preferível e recomendável que se escreva azul-anil, com hífen, em lugar de «azul anil».

Acrescente-se que, do ponto de vista ortográfico, se infere do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90) que os nomes e adjetivos referentes a cores constituídos por duas palavras que mantêm o seu acento próprio, sem elemento de ligação entre elas (isto é, sem preposição), são tratados como compostos hifenizados, tal como acontece com azul-escuro (sublinhado nosso):

«Base XV – Do hífen em compostos, locuções e encadeamentos vocabulares

1 – Emprega-se o hífen nas palavras compostas por justaposição que não contêm formas de ligação e cujos elementos, de natureza nominal, adjetival, numeral ou verbal, constituem uma unidade sintagmática e...

Pergunta:

Qual o plural de hipervígil?

Resposta:

O plural de hipervígil é hipervígeis.

O plural de vígil é vígeis (cf. Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves), logo, o plural do derivado hipervígil (hiper- + vígil) é hipervígeis.

Pergunta:

«Mas, antes de transpor a porta, o Xambaia tomou-lhe o braço, arrastou-o para a chota, falando-lhe enquanto andavam.» (Castro Soromenho).

Qual o significado de chota?

Resposta:

O termo chota encontra-se definido no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora (disponível na Infopédia), como regionalismo angolano: «(Angola) recinto circular, coberto de capim e aberto lateralmente, que é usado pela comunidade masculina de uma sanzala como ponto de encontro, refeitório e tribunal.» A palavra, que pode pronunciar-se com o aberto ou com o fechado, vem de «[d]o quioco tyiota, «idem», de kwota, «aquecer-se», alusão às reuniões noturnas» (idem)*.

O vocábulo também tem registo no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado (mantém-se a ortografia original): «Alpendre circular, ou vasta palhota de elevado tecto e numerosas entradas baixas, em cujo centro arde o fogo perpétuo. Desempenha simultaneamente as funções de cubata comum, clube, tribuna do soba, sala de conselho, tribunal e parlamento de cada quimbo, em Angola; o m[esmo] q[ue] jango ou angiano.»**

* Chota é homófono de xota, que o Dicionário Houaiss (2009) regista como palavra grosseira (tabuísmo) usada no Brasil para designar a vagina.

** quimbo – bairro/aldeia africano do centro de Angola....