Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Podemos considerar o zero quantificador numeral?

Obrigada.

Resposta:

O zero é um numeral cardinal ou, como se diz na terminologia atualmente usada no ensino não universitário, um quantificador numeral como um, dois, três ou trinta.

Na Nova Gramática do Português Contemporâneo (1984, p. 319), de Celso Cunha e Lindley Cintra, classifica-se zero como numeral cardinal: «[...] Na lista dos CARDINAIS costuma-se incluir zero (0), que equivale a um substantivo, geralmente usado em aposição: grau zero desinência zero [...].» Na Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, p. 929), zero é igualmente mencionado em vários exemplos de numerais cardinais comuns.

Pergunta:

«Morreu de uma morte terrível» é correcto. «Morreu uma morte terrível», sem de, eu diria que é igualmente correcto; pois também se diz «viveu uma boa vida», «quero viver a vida». Que vos parece?

Resposta:

É possível dizer ou escrever «morrer de morte», mas não parece tão frequente como «viver a vida» e pode até ter sabor arcaico ou certo caráter idiomático («morrer morte natural»):

1 — Pedes ao leão esfaimado do deserto que não devore a zebra que tem nas garras! Afrontou-me, e eu pago a afronta; reptou-me, e eu aceitei o repto. Morrerá morte infame de peão criminoso... (Alexandre Herculano, O Bobo, in Corpus do Português);

2 – [...] considerando que o réu António Maria das Neves Carneiro se acha incurso na disposição da Ordenação, etc., o condenam a que com baraço e pregão seja levado pelas ruas públicas desta cidade ao lugar da forca que se acha levantada no Cais do Tojo, e aí morra morte natural para sempre [...] (Camilo Castelo Branco, A Viúva do Enforcado, in Corpus do Português);

3 – As honras da primeira cabeça deu-as a alçada ao Tiradentes, o qual com baraço e pregão devia ser conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca e nela morrer morte natural [...] (Joaquim Norberto de Souza Silva, História da Conjuração Mineira, in Corpus do Português).

Mais habitual é ocorrer preposição – «morrer de morte...» –, e, nesse caso, o substantivo morte pode ser adjetivado de várias maneiras («morte natural», informalmente «morte morrida» – cf. Dicioná...

Pergunta:

Tenho ideia de ter visto, não sei em que dicionário, a hipótese de se escrever "astróides". O comum é encontrar "asteróides" ou "asteroides, mas, se são "astros" e não "asteros" ou "ásteros", não seria mais lógico escrever "astróides" e recusar a forma mais comum?

Obrigado.

Resposta:

Escreve-se asteroide (sem acento, no contexto da aplicação do Acordo Ortográfico de 1990asteróide, com acento, na anterior norma ortográfica*) por razões etimológicas. A palavra portuguesa relaciona-se com o adjetivo grego asteroeidês, asteroeidês, asteroeidés, «semelhante a uma estrela» (Dicionário Houaiss), aparentemente por intermédio do latim científico. O radical do adjetivo grego é o mesmo de ástēr, astéros, «estrela», que passou ao latim como aster, astĕris, «estrela» (idem). Por seu lado, o vocábulo astro provém de uma forma radical com a mesma origem da anterior mas ligeiramente divergente: «grego ástron, [astr]ou, 'astro, astro isolado, sistema de estrelas, constelação (em oposição a ástēr, 'estrela')», que passou ao latim como astrum, astri  (idem, s. v. astro).

* No Brasil, antes da entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990, também se escrevia asteróide, conforme a secção XII (43, 6.ª) do Formulário Ortográfico de 1943.

Pergunta:

Na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 26, p. 477, col. 1, l. 25, observa-se, na entrada sabedoria, uma referência ao romance de cavalaria Crónica do Imperador Clarimundo (João de Barros, Coimbra, 1522): «… e pois isto que disse mais foi espiorado de sua graça que de minha sabedoria…» (capítulo 28.º).

Tendo efetuado alguma pesquisa, não encontrei o termo "espiorado" em nenhum lugar, devendo confessar que foi breve e superficial a pesquisa efetuada.

A minha questão é, pois: o termo "espiorado" foi palavra portuguesa – hoje um arcaísmo –, ou trata-se de uma gralha na referida enciclopédia? Se é arcaísmo, isto é, se realmente existiu, qual o significado que hoje se pode atribuir?

Antecipadamente grato, pela V.ª dedicação.

Resposta:

Trata-se de uma gralha, porque a grafia original é espirado:

«... pois isto que disse mais foi espirado de sua graça que de minha sabedoria...» (João de Barros, Chronica de Emperador Clarimundo, donde os Reys de Portugal descendem, tirada de lingua ungara em a nossa Portuguesa, Lisboa: Officina de Francisco da Sylva, Livreiro da Academia Real, e do Senado; e impressa à sua custa, 1742, cap. XXVIII, p. 298 – disponível na Biblioteca Nacional Digital).

Espirado é o mesmo que inspirado, tendo em conta o Diccionario da Antiga Linguágem Portugueza, de H. Brunswick (Lisboa, Empresa Lusitana Editora, 1910).

Pergunta:

Um dos critérios para se distinguir o complemento de nome é ser selecionado por um nome deverbal. Neste caso, se o verbo de onde deriva o nome for intransitivo, continua-se a considerar que exige um complemento? Por exemplo: «a construção da ponte» (verbo transitivo direto = «construir algo»); «a viagem marítima» (viajar é intransitivo, se bem que reconheço que pode também ser transitivo indireto...).; «o sorriso da Maria é lindo».

Ainda... na frase: «o livro que me deste é muito interessante», a oração relativa tem função sintática de complemento do nome, ou modificador restritivo? Consideram que «livro» exige complemento?

Grata.

Resposta:

O complemento de um nome (no caso, sorriso) pode também relacionar-se com a transposição do sujeito do verbo transitivo correspondente (sorrir). É, portanto, adequado dizer que «da Maria» é complemento do nome na expressão «o sorriso da Maria»: «A Maria sorri» → «o sorriso da Maria».

Em relação a «viagem marítima», o adjetivo marítima tem a função de complemento do nome, porque pressupõe o uso transitivo indireto de viajar: «viajar por mar» [«por mar» = complemento oblíquo] → «viagem marítima».

Finalmente, a oração subordinada adjetiva relativa restritiva «que me deste» é um modificador restritivo. Não se trata de um complemento do nome, porque, se assim fosse, deveria remeter para as características semânticas de livro, as quais pressupõem uma atividade e o seu resultado (o próprio livro); nessa atividade contam-se: a) um autor; b) o tema, o tópico ou o assunto que organizam o texto do livro. Como a oração «que me deste» não se enquadra nem em a) nem em b), depreende-se que não pode ser senão um modificador restritivo.