Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Por que motivo não se escreve "fémea"? Sendo esta uma pronúncia bastante comum em Portugal (basta fazer uma pesquisa para encontrar até títulos de notícias de alguns jornais com esta grafia), não se deveria aplicar a regra de usar o acento agudo só com função de marcar a sílaba tónica nesta situação (tal como acontece em quilómetro, termómetro, barómetro, manómetro, cronómetro, etc, em que há variação de pronúncia)?

Resposta:

Não se escreve fémea por uma razão que foi dada há mais de 70 anos, nas Bases Analíticas do Acordo Ortográfico de 1945:

«As vogais tónicas a, e e o de vocábulos proparoxítonos levam acento circunflexo, quando são seguidas de sílaba iniciada por consoante nasal e soam invariavelmente fechadas nas pronúncias normais de Portugal e do Brasil: câmara, pânico, pirâmide; fêmea, sêmea, sêmola; cômoro. [...]»

Nessa época, considerou-se, portanto, que a pronúncia normativa da palavra era com e tónico fechado, mesmo em Portugal; e hoje é assim.

Contudo, pelo menos, em Portugal, a experiência mostra-nos que a forma "fémea" está bastante espalhada. Este vocábulo aproxima-se, assim, com casos como os de gémea e Eufémia, que têm acento agudo apenas com a finalidade de marcar a tonicidade, porque a vogal pode vacilar entre os timbres aberto e fechado (cf. gémeo e Eufémia no Vocabulário da Língua Portuguesa, que Rebelo Gonçalves publicou em 1966).

Pergunta:

Pergunto qual é a ortografia mais correta do instrumento musical: "djambé", ou "djembê"?

Grato, desde já, pela atenção.

Resposta:

A palavra parece ainda não ter forma estável em português1, e registam-se, portanto, variantes – djambé, djembé, djembê –, sem que nenhuma seja considerada o padrão. No entanto, se for verdadeira a origem atribuída ao termo – do malinqué2 jembe, em transcrição fonética [dʲẽbe], segundo artigo da Wikipédia em inglês –, djembê pode ser uma forma adequada, muito embora se encontrem reservas ao uso da sequência dj, o que permite defender a forma jembê, mais de acordo com a fonia e grafia características do português.

1 Agradecemos à professora Clara Saraiva (investigadora do Instituto de Investigação Científica Tropical e docente do Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa) a informação transmitida, segundo a qual qualquer destas três variantes tem uso corrente conforme os países e as regiões onde se toca este instrumento musical.

2 O malinqué é uma «língua nigero-congolesa falada pelos malinqués» (Dicionário Houaiss), os quais constituem um «povo do Mali e da Guiné, que vive da agricultura (arroz, sorgo), segundo uma organização fortemente hierárquica e um sistema de clãs, em aldeias fortificadas» (idem, ibidem).

Pergunta:

Do ponto de vista da correção lexicográfica e da prosódia, devemos empregar perméase, ou permease? Ou o uso é indistinto? Ou permease seria corruptela da forma acentuada, ou, talvez, idiossincrasia de biólogos?

Agradeço, desde já, a gentileza.

Resposta:

A forma mais correta é perméase, mas o uso mais difundido, mesmo entre especialistas, é o da forma permease.

Perméase/permease é um termo da bioquímica e aplica-se a «cada uma de um grupo de enzimas que participa do processo de transporte ativo de substâncias através da membrana celular» (Dicionário Houaiss). As duas formas – perméase e permease – estão dicionarizadas (cf. dicionário da Porto Editora), além de registadas nos vocabulários ortográficos recentes (ver Vocabulário Ortográfico do Português e vocabulário ortográfico da Porto Editora). É de notar, porém, que o vocabulário ortográfico da Academia Brasileira de Letras acolhe apenas a forma perméase; mesmo assim, o Dicionário Houaiss, que remete permease para perméase, assinala que a grafia sem acento gráfico, embora não preferencial, é mais u...

Pergunta:

Como fica a vírgula em orações consecutivas com que depois de tão, tanto e tal? Li a instrução de que se deve usá-la sempre, mas há muitos exemplos de boas fontes que não o fazem. Que critério seguir? Dispensar a vírgula nos períodos de fácil entendimento?

Exemplos sem vírgula:

(Machado de Assis Dom Casmurro) «A vida é tão bela que a mesma ideia da morte precisa de vir primeiro a ela... O que cismei foi tão escuro e confuso que não me deixou tomar pé... Continuei, a tal ponto que o menor gesto me afligia...»

Napoleão Mendes de Almeida, Gramática Metódica: «Portou-se tão bem que o elogiaram.»

Dicionário Houaiss: «Tanto repetiu a leitura que conseguiu decorá-la. Bateu tanto que quase matou.»

Resposta:

No contexto escolar e em muitas áreas de atividade em que é necessária a aplicação sistemática das normas, impõe-se o uso da vírgula em todos os casos apresentados. Esta prática tem vantagens didáticas, mas não é seguida universalmente, como bem confirmam os exemplos enviados, até porque é duvidoso que as chamadas orações consecutivas sejam verdadeiras orações adverbiais.

Por exemplo, na Gramática do Português (GP) da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, pp. 2168-2173), os exemplos de orações consecutivas nunca apresentam vírgula antes da conjunção que (ou da preposição para em casos como «ele é muito pequeno para conseguir lá chegar»). Esta ausência da vírgula correlaciona-se com a classificação das chamadas orações consecutivas, que, na GP, são construções de grau como as dos comparativos adjetivais, as quais não exibem vírgula antes do segundo termo de comparação:

1 –  «A Maria é mais alta do que a Rute.»

2 – «A Maria é tão alta que bate com a cabeça no teto.»

Concluindo, recomenda-se a vírgula antes das orações consecutivas, mas há quem não a use, e há bons argumentos para defender esta prática.

Pergunta:

Deve escrever-se "vocaliso", "vocalizo", ou é possível usar ambas as palavras?

Resposta:

Regista-se vocalizo, e não "vocaliso".

É o que se verifica nos seguintes vocabulários ortográficos: Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), de Rebelo Gonçalves; Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (2009), da Porto Editora; Vocabulário Ortográfico do Português (2010), do Portal da Língua; e Vocabulário Ortográfico Atualizado da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa (2012). O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras regista vocalise, como estrangeirismo) e vocalizo.

Vocalizo e vocalise são termos da área musical, e ambos significam «exercício de canto sobre uma vogal» e «canto sem palavras» (cf. vocalizo, Dicionário Priberam da Língua Portuguesa; ver também Dicionário Houaiss, que define as duas palavras como «exercício vocal cantado, em que a voz se apoia em uma vogal, para percorrer a escala cromática, subindo e descendo»).

Assinale-se que, entre dicionários, o Dicionário Houaiss eDicionário Priberam da Língua Portuguesa registam como estrangeirismo vocalise e, como adaptação deste, acolhem também vocalizo. Por seu lado, o dicionário da Porto Editora (disponível na Infopédia) e...