Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
405K

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Antes de mais,agradeço o contributo que têm dado, ao longo de vários anos, para melhor se compreender, falar e escrever a língua portuguesa.

Na análise da frase, abaixo transcrita, surgiram-me algumas dúvidas.

«A era do petróleo criou prosperidade a uma escala que as gerações anteriores não poderiam sequer imaginar.»

A oração iniciada por que será subordinada adjetiva relativa restritiva, ou subordinada adverbial consecutiva (dado que estará implícito, na subordinante, que «criou prosperidade a uma escala [tal] que...»)?

Agradeço a paciência e disponibilidade!

Resposta:

Pode considerar-se que a oração é ambígua, porque interpretável como relativa ou como consecutiva (como bem observa o consulente).

A leitura consecutiva decorre de aceitar-se que está subentendida uma expressão de intensidade – por exemplo, o determinante tal, que marca intensidade:

1 – «A era do petróleo criou prosperidade a uma escala que as gerações anteriores não poderiam sequer imaginar.» = «A era do petróleo criou prosperidade a uma escala [tal,] que as gerações anteriores não poderiam sequer imaginar.»

Esta ambiguidade é comentada pela Gramática da Língua Portuguesa (Lisboa, Editorial Caminho, 2003, pág. 758/759), de Maria Helena Mira Mateus e outras autoras, ao realçar a afinidade entre orações consecutivas e orações relativas:

«A existência de frases ambíguas [...] entre a natureza relativa e a de consecutiva aproxima de novo os dois tipos de construção:

[...] Tenho uma casa que abriga muita gente.

[...] Tenho uma casa tal que abriga muita gente. [...]»

É de assinalar, porém, que a Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, pág. 2169) classifica como orações consecutivas aquelas que, introduzidas por que, ocorrem numa frase exclamativa:

«O operador consecutivo pode não ser expresso, em frases exclamativas como as seguintes:

[...] Estava um frio que não se podia sair de casa! [...]

Ele trabalha que se mata! [...]»

Voltando à frase em questão, embora esta não seja exclamativa, a intensificação associada a «uma escala» permite enquadrar a oração «que as g...

Pergunta:

Há anos venho ouvindo um certo "jargão" utilizado para referir-se a diferenças de saldos, conforme abaixo:

«Olá, você poderia me explicar porque essa fatura de 100 está com saldo de 110 antes do ajuste?

Analista responde:

Ô, sim, me desculpe, é que eu errei e fiz um lançamento A MAIOR do valor original de 100.»

«Olá, você poderia me explicar porque essa fatura de 100 está com saldo de 90 antes do ajuste?

Analista responde:

Ô, sim, me desculpe, é que eu errei e fiz um lançamento A MENOR do valor original de 100.»

Gostaria de saber se essa expressão utilizada de «a maior» e «a menor» está correta, porque sempre dói em meus ouvidos quando ouço as pessoas falando isso. No entanto, ouço dos mais altos cargos, como diretores, gerentes e controllers, que utilizam sem nenhuma censura tal expressão.

Agradeço a atenção e fico no aguardo para um possível esclarecimento.

Resposta:

Não há consenso quanto à aceitabilidade das locuções «a maior» e «a menor», que são locuções atestadas apenas no português do Brasil. O Dicionário Houaiss (1.ª edição brasileira, de 2001) regista-as como subentradas, respetivamente, de "maior" e "menor", com os seguintes significados: «a maior»: «[o] mesmo que "a mais"»; «a menor»: «em quantidade, qualidade ou teor inferior (ao esperado); a menos, de menos. Ex.: trouxe três artigos a menor do que lhe fora encomendado.»

Refira-se que o dicionário em apreço consigna tais expressões sem lhes juntar comentários, do que se depreende que as considera corretas.

No entanto, Maria Helena de Moura Neves, no seu Guia de Uso do Português – Confrontando regras e usos (São Paulo, Editora UNESP, 2002), considera que não se justifica o emprego das duas expressões em lugar de «a mais» e «a menos», mas não adianta explicações.

Tudo isto sugere que, para os mais zelosos da tradição linguística, é melhor evitar as expressões em causa. Mesmo assim, não se poderá dizer que «a maior» e «a menor» sejam usos incorretos, visto a sua dicionarização mostrar que se tornaram hoje aceitáveis. Observe-se, por último, que estas expressões são desconhecidas em Portugal, onde se usa comummente «a mais» e «a menos». Mantém-se, portanto, atual uma resposta de José Neves Henriques (1916-2008), que ilustrou bem esse facto em 2000.

Cf.: «

Pergunta:

Antes de mais, parabéns pelo excelente trabalho prestado ao longo destes anos.

Durante uma conversa com colegas de trabalho, surgiu-nos uma dúvida relativa ao nome que se dá a uma pessoa que entretém. Não conseguimos chegar a uma conclusão. Quem conduz é condutor. Quem cozinha é cozinheiro. Quem entretém é...? Apresentador ou humorista não nos pareceram os termos mais correctos para descrever esse alguém. Existe o termo entertainer em inglês, mas não em português?

Obrigado pela atenção dispensada!

Resposta:

Não se usam palavras como "entretedor" ou "entreteiro" (pressupondo "entreter"), nem "entretenedor" (pressupondo o radical entreten-, de entretenimento). Não existe, portanto, um termo português que corresponda exatamente ao inglês entertainer, cujo significado está repartido por palavras como artista, animador, cómicohumorista ou apresentador. Outras palavras poderão também traduzir entertainer, muito dependendo do contexto.

Os nossos agradecimentos pelas generosas palavras.

Cf. 8 palavras que os ingleses nos roubaram

Pergunta:

Os dicionários gerais da língua portuguesa (Houaiss e Aurélio, por exemplo) dão como obscura a origem do verbo enxergar. Há algum indício (ainda que de etimologia popular) para formação deste verbo?

Resposta:

Sobre a etimologia de enxergar, parece que, por enquanto, pouco mais se pode adiantar ao que é dito no Dicionário Houaiss, ou seja, que há quem pretenda que enxergar deriva ou é a conversão de enxerga, «colchão», do latim serica, sericorum, «estofo, tecido ou veste de seda». Contudo, reconheça-se que é difícil explicar como pode o significado de tal palavra prestar-se a desenvolver os valores referentes à perceção que hoje se associam a enxergar.* Cite-se o comentário de José Pedro Machado no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (mantém-se a ortografia do original, anterior à de 1990):

«Não está bem demonstrada a relacionação enxerga > enxergar, admitida por alguns, entre os quais [Antenor] Nasc[entes] [Dicionário Etimológico]-1, s. v.; em 1943, Leo Spitzer também a aceitou (Hispanic Review, pp. 216-218), apenas pondo dificuldades à solução semântica do dicionarista brasileiro ("O sentido faz dificuldade; tratar-se-ia de alguma fazenda transparente de seda, através da qual se enxergasse? O esp[anhol] tem enjergar, que significa "principiar e dirigir um negócio"). Spitzer daria razão ao étimo apontado por Nascentes, mas a evolução semântica deve ter sido outra; depois de se referir à acepção galega "endilgar; dirigir un asunto malamente, ensartar un discurso o escrito sin orden ni concierta; divisar, ver de lejos") e de aludir a passos de Os Lusíadas (IX, 68 e 62). O verbo apareceu (emerged) sem dúvida em áreas rurais; cita as acepções registadas por Cândido de Figueiredo. O pref. en- de enxerga é um problema; lat. serica > esp. serga (cf. francês serge, sarge), forma só preservada no título de Montalvo "Las sergas de Esplandián". O espanhol enjerga = regressivo de *enjergar, "...

Pergunta:

A respeito da consulta sobre o fenómeno da chamada troca do /v/ pelo /b/, gostaria de contribuir outro ponto de vista.

A consideração deste fenómeno fonético como "dialectal" vem do facto de isto acontecer actualmente apenas na região norte de Portugal e nos dialectos galegos; no entanto, na maior parte do país e, portanto, no português padrão actual, não acontece. Isto leva à consideração de que são os nortenhos os que «falam esquisito» e se afastam da norma. Mas isto é o mesmo que dizer que a situação "original" do português foi a diferenciação dos fonemas /v/ e /b/. Não obstante, a língua portuguesa tem a sua origem exactamente no território onde actualmente esta diferenciação não existe (Galiza e Norte de Portugal) e talvez nunca existisse. A troca destes sons tem origem no latim vulgar, no qual se produz uma confusão dos fonemas [β], que é um alófono fricativo bilabial de [b] quando intervocálica, e [w], fonema semiconsoante que era escrito <v> ou <u> e pronunciado como o <w> do inglês. Este fenómeno é conhecido como betacismo. A ideia mais estendida é que, perante esta confusão, as línguas românicas tiveram soluções diferentes, uma das quais é a criação duma fricativa labiodental, /v/. Nas línguas galo-românicas ou itálicas parece que foi assim, e às vezes alguns consideram que também aconteceu isto no "português meridional", mas não nos dialectos do Norte.

Acho totalmente errado dizer que isto é influência do espanhol. Mas o caso do português tem de ser necessariamente diferente do do galo-românico, porque esse "português meridional" não é mais do que a evolução duma língua que já se tinha formado no Norte e que ainda hoje não tem o fonema labiodental /v/ (dialectos galegos e dialectos portugueses setentrionais). Portanto, a aparição do fonema /v/ em português parece mais u...

Resposta:

Muito se agradecem observações do consulente, as quais suscitam um breve comentário.

É possível que o [v] seja, foneticamente, uma inovação do português centro-meridional, mas, do ponto de vista fonológico, tem-se considerado que este [v] seria variante da fricativa bilabial [β] (também notada [b], como se verá mais adiante], que parece ainda ocorrer hoje como variante [alofone] de /b/ mesmo em certos falares meridionais (em posição intervocálica, por exemplo, no falar lisboeta, quando se pronuncia acabar). O segmento [v], labiodental, teria prevalecido sobre [β], ao mesmo tempo que permitia manter um contraste fonológico talvez mais antigo mais bem ténue, pois opunha, no sistema dialetal galego-português, duas unidades com o mesmo ponto de articulação, uma oclusiva bilabial e uma fricativa (ou constritiva) bilabial. A neutralização destas duas unidades, que convergiram num único fonema, seria uma inovação dos sistemas dialetais românicos da metade norte da Península Ibérica. Os dialetos portugueses setentrionais seguiram, portanto, o galego, o leonês ou o castelhano, ao neutralizar esse contraste fonológico. Os falares centro-meridionais mantiveram o contraste, mas vincando-o mais, ao substituir o ponto de articulação da fricativa (ou constritiva), que teria deixado de ser bilabial para passar a labiodental.

Próximo desta perspetiva parece ser o ponto de vista da linguista brasileira Rosa Virgínia Mattos e Silva (O Português Arcaico. Uma Aproximação, vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008, pág. 549; manteve-se a ortografia do original):

«[...] [N]a fase galego-portuguesa, ou seja, na primeira fase do português arcaico, no Noroeste peninsular, haveria uma oposição entre bilabial oclusi...