Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual está correcto e porquê?

– «Um milhão e uma pessoa.»

– «Um milhão e uma pessoas.»

Obrigado.

Resposta:

A forma correta é «um milhão e uma pessoas», com «pessoas» no plural, tal como acontece quando se diz «um milhão de pessoas» ou como sucede com mil, quando se diz «mil e uma pessoas». O facto de milhão requerer a preposição de se não for imediatamente seguido de outro numeral («um milhão de pessoas») não implica que, em referência ao número imediatamente superior a «um milhão» – «um milhão e um» –, fique subentendida a expressão «de pessoas» e que o numeral um fique associado a um singular. Por outras palavras, o numeral não subentende «um milhão [de pessoas] e uma pessoa».

Sobre o uso de milhão, cite-se a Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, pág. 933; o * indica agramaticalidade):

«[...] Os numerais da classe dos milhões são formados com base no cardinal especial milhão, que é lexicalmente um substantivo. Os diferentes numerais são obtidos através de quantificação por meio de numerais cardinais comuns (p. e., um milhão, três milhões). Milhão, bilião, trilião, etc. são numerais especiais. São, como se disse, cardinais especiais. Por esse facto, os numerais cardinais que denotam unidades destas classes e que não sejam seguidos de outros numerais ligam-se ao grupo nominal que forma o domínio da quantificação através da preposição de: assim, tem-se um milhão de manifestantes (vs. *um milhão manifestantes) a par, p. e., de uma dúzia de manifestantes (vs. *uma dúzia manifestantes); no en...

Pergunta:

A palavra inúmero é formada por derivação prefixal? Se sim, o i tem que valor semântico? Pode-se ou deve-se interpretar o i como parte do radical, sendo a palavra sincronicamente primitiva? No latim, o in, em innumerus, era considerado prefixo, ou só se parecia com um, sendo na verdade parte do radical?

Obrigado.

Resposta:

O caso apresentado não tem uma resposta inequívoca.

O adjetivo inúmero é suscetível de uma análise diacrónica, que permite classificá-lo como cultismo, ou seja, adaptação do latim innumerus, por via erudita. Em latim, in é um prefixo de valor negativo, o que permite interpretar innumerus como sinónimo de innumerabilis, equivalente ao português inumerável, ou seja, «abundante» (deixando subentendido que algo é tão abundante, que não se pode contar).

Por outro lado, podendo i- ser encarado, em português, como variante contextual do prefixo in- – cf. ilegal, imoral, inegável, inegociável –, a palavra é analisável como derivada, mas com a particularidade de, ao contrário do que acontece com a maioria dos derivados por prefixação*, o prefixo ocorrer associado a uma mudança de classe gramatical da sua base de derivação, que é o substantivo número. Uma alternativa a esta análise seria considerar que, na atual sincronia, inúmero é uma palavra complexa não derivada, conforme define a Gramática Derivacional do Português (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013, pág. 64), de M.ª Graça Rio-Torto et al. Adotando esta perspetiva, poderia propor-se que a base de derivação de inúmero – número – é uma forma adjetival que não tem autonomia enquanto adjetivo no português contemporâneo.

* Refira-se que é possível a adjunção de in- a substantivos: inverdade, injustiça. No entanto, estes derivados prefixais são substantivos como as bases de derivação respetivas – verdade, justiça.

Pergunta:

Primeiramente, gostaria de parabenizá-los por essa excelente ferramenta de auxílio em prol da cultura. Embora a expressão «vem bem a calhar» não seja tão popular aqui no Brasil, gostaria de saber sua etimologia.

Resposta:

Agradecendo as palavras iniciais do consulente, observe-se que falar da etimologia de uma frase feita ou de uma expressão idiomática é geralmente uma tarefa que raramente chega a identificar os seus criadores e as suas circunstâncias, até porque tais formas surgem e difundem-se anonimamente, em processos sociais de transmissão linguística. É o caso de «vem bem a calhar», que, além de ter numerosas variantes, decorre mais das virtualidades de uso que a semântica do verbo calhar encerra do que da criatividade arbitrária de um falante concreto.

Diga-se, então, que este verbo significa literalmente «entrar na calha», entendendo-se por calha o mesmo que sulco, cano, rego ou vala. Ao interpretar a expressão em apreço, deverá ter-se em conta que tudo o que "calha" é encaminhado por uma calha, que traça um rumo, uma direção. Esta imagem presta-se a ser também uma metáfora da oportunidade com que algo acontece ou alguém aparece, muitas vezes trazendo ("encaminhando") algum benefício. Daí os usos de calhar nas aceções de «caber em sorte» e «convir», que são extensões semânticas do referido significado literal. Assim se explicam igualmente expressões como «vem bem a calhar», «vem a calhar bem» ou «vem mesmo a calhar», as quais são todas de uso corrente em Portugal*. Refira-se ainda a etimologia de calha, palavra que terá origem numa forma latina não atestada, canālia, um neutro plural de canālis, «cano, tubo, aqueduto, rego de água, fosso; canal, leito, corrente de um rio» (ver Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, e Dicionário Houais...

Pergunta:

«Haja a jogarmos conversa fora!»

Esta frase é correta, ou seria «haja jogarmos conversa fora!»?

Grata.

Resposta:

Do ponto de vista da norma-padrão, a sequência em causa não tem tradição, fugindo ao que é o uso correto com haja em frases exclamativas, nas quais esta forma verbal é sempre seguida de uma expressão nominal: «haja saúde!»; «haja paciência!». Parece, pois, que a resposta à pergunta é relativamente simples: é incorreto o emprego da forma verbal haja associada a um infinitivo, tendo ou não uma preposição de permeio.

Contudo, verifica-se que, na Internet, em páginas brasileiras*, ocorre haja acompanhado de oração de infinitivo, precedida ou não da preposição a: «haja (a) jogarmos conversa fora!» Esta construção afigura-se estranha – pelo menos, na perspetiva do português de Portugal –, e, acerca dela, certamente os gramáticos e muitos falantes só terão a dizer que é inaceitável, considerando descabida a discussão quanto a saber se o uso preposicionado é melhor que o não preposicionado. Não obstante, na perspetiva descritiva, vale a pena registar tal sequência, que pertencerá ao registo popular brasileiro; mas, querendo dar-lhe atenção e estatuto normativos, diga-se que, se «haja» não exibe preposição antes da expressão nominal que é seu complemento direto («haja saúde!»), então, em princípio, também não se imporá a preposição à estrutura com infinitivo, que tem função completiva. Sendo assim, a sequência «haja jogarmos conversa fora» será melhor que «haja "a" jogarmos conversa fora».** Refira-se ainda que a expressão «jogar conversa fora» é brasileirismo idiomático, de tom informal, conforme se regista no Dicionário Houaiss: «Conversar sobre assuntos corriqueiros, sem grande importância.»

* Registem-se três exemplos provenientes de páginas da Internet, nas quais é notório o to...

Pergunta:

Sendo minhoto, sempre usei a palavra loca para referir-me a qualquer buraco ou depressão, o que segundo alguns dicionários parece estar correcto. Questiono-me sobre a possível origem germânica, dado Loch ser usado em alemão para designar um buraco ou depressão.

Obrigado.

Resposta:

As fontes consultadas não confirmam a origem germânica de loca.

José Pedro Machado, no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, considera que o vocábulo tem origem obscura, embora refira (sem a perfilhar) a hipótese de a palavra poder ter origem no tupi roca, cujo r inicial seria não múltiplo, mas, sim, brando (mais próximo do r de caro), o que permitiria explicar a passagem desse r inicial a l. O Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa, de Artur Bivar, e o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa registam loca como o mesmo que «pequeno esconderijo para peixes, «pequena gruta» e «cavidade», considerando o segundo dicionário que a palavra tem origem obscura.  O Dicionário Houaiss (1.ª edição brasileira , de 2001), também a regista em aceções semelhantes, mas atribui-lhe origem latina: «lat. loca, orum neutro plural do latim locus, i "lugar, sítio, localidade, ponto tópico"». Esta fonte parece seguir o que já antes sugerira interrogativamente Cândido de Figueiredo no seu dicionário (edição de 1913, disponível em versão em linha), proposta registada por Antenor Nascentes, no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa («Figueiredo cita em dúvida o latim locus, lugar»).

Se loca tem origem latina, diga-se que não parece haver relação do latim locus com o alemão Loch («buraco»), atendendo às respetivas etimologias: o radical de locus (loc-) vem do radical indo-europeu *st(h)el («pôr, colocar»), enquanto Loch se terá desenvolvido da raiz também indo-europeia *leug-, *lŭg-, «dobrar, torcer» (cf., em inglês, Online...