Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual o sentido original do termo "baveca"?

Resposta:

A palavra babeca – e não "baveca", no português contemporâneo – encontra-se registada em alguns dicionários como o mesmo que «homem néscio, basbaque» , conforme registo do Grande Dicionário da Língua Portuguesa (Lisboa, Círculo de Leitores, 1991), de José Pedro Machado, que retoma a definição de Cândido de Figueiredo no Novo Dicionário da Língua Portuguesa (foi consultada a versão eletrónica da 2.ª edição de 1913). Machado também acolhe babeca, no sentido de «cavalo muito grande», e babeco, como sinónimo de caipira1. Observe-se que o substantivo comum babeca é geralmente associado etimologicamente a baba, como alusão à tendência que apresentam certos doentes mentais para salivar abundantemente.

Da Idade Média, tem-se memória da forma onomástica Baveca como nome de um jogral galego (ou português) – Joam Baveca , ativo em meados do século XIII –, a qual parece ter origem no substantivo comum baveca, do galego ou do português medievais. O vocábulo babeca será, portanto, a forma atual da referida palavra galego-portuguesa, que terá origem, segundo José Pedro Machado (Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, 2003) no «provençal bavaec, baveca,"'bobo", "charlatão" < latim *babaeca, diminutivo babaecula [...]; cf. latim babaeculus ou babecalus, "tolo", "indiscreto", "asno", "pateta", "idiota", "tapado", "estúpido", "néscio"»2. Quer as formas provençais quer a latinas parecem relacionar-se também com a noção marcada por baba.

1 O Dicionário Houaiss define babeco como regionalismo do estad...

Pergunta:

Existe em português a expressão «desculpe a moléstia» com sentido «desculpe o incómodo»?

Obrigada pelo esclarecimento.

Resposta:

No português de Portugal, não se usa a expressão «desculpe(m) a moléstia» no sentido de «desculpe(m) o incómodo». No português do Brasil, também não parece haver tal uso. É possível que se trate de uma tradução apressada do castelhano «disculpe(n) la(s) molestia(s)», que significa «desculpe o(s) incómodo(s)/transtorno(s)/inconveniente(s)» (ver traduções do portal Linguee). Não se exclui que certos textos galegos possam dar azo a pensar que a expressão ocorre no discurso de falantes de língua portuguesa, porque à palavra galega molestia, eventualmente com acento, pode associar-se o artigo definido a, que é igual ao português: «Desculpen a molestia, dixo o arnal con ollos somnolentos» (Manuel Rivas, En Salvaxe Compaña, Vigo, Edicións Xerais, 1993, no Tesouro Informatizado da Língua Galega).

Pergunta:

Deve dizer-se, e escrever-se já agora, em português, "militaria", ou "militária?" E grafar deve ser em itálico? Em que circunstâncias?

Resposta:

A palavra, de uso relativamente recente em português, parece adaptação do anglicismo militaria, termo formado em inglês com elementos de raiz latina, que significa «artigos militares com interesse histórico, como armas, uniformes e acessórios» («Military articles of historical interest, such as weapons, uniforms, and equipment», Oxford English Dictionary)1.

Sendo assim, há várias opções quanto a este vocábulo:

1. Como empréstimo do inglês que é, assinala-se essa particularidade mediante o uso do itálico: militaria.

2. É possível também adaptá-lo fonética e ortograficamente ao português – "militária" –, forma não atestada nas fontes dicionarísticas consultadas para a elaboração desta pergunta. Verifica-se, porém, que em muitas páginas da Internet ocorre a grafia "militária"2.

3. Uma terceira opção será usar a expressão «antiguidades militares», que se revela adequada atendendo ao inglês militaria (ver acima).

1 Note-se que em alemão se regista Militaria, nas aceções correspondentes a «livros militares, livros sobre guerra» e «objetos militares» (dicionário alemão-português da Porto Editora; ver também Duden, em alemão). Para esta resposta, não foi possível explorar a relação do termo inglês com o alemão e a eventual repercussão deste na forma portuguesa em causa. Contudo, um exemplo dos corpora da Linguateca sugere estreita afinidade semântica com a palavra alemã: «As unidades normalmente es...

Pergunta:

Gostaria de colocar uma questão relativa à composição de palavras. Relativamente à palavra preposição (lat. prae+positione, sendo que prae é também ela uma preposição + ablativo), gostaria de saber se poderemos considerá-la uma palavra formada por composição: radical + palavra ou se se trata de uma palavra base. A ser considerada uma palavra composta e não uma palavra base, a dúvida prende-se também com o prefixo prae e o seu significado, uma vez que no verbo prepor (lat. prae+ponere) temos o significado de anterioridade ou posteridade na ação. As mesmas dúvidas se colocam em relação às palavras advérbio e pronome, isto é, se podem ser consideradas palavras formadas por composição (rad.+palavra) ou se se trata de palavras simples.

Obrigada.

Resposta:

A pergunta que é feita relaciona-se com aspetos da análise morfológica só abordados nos estudos universitários. Mesmo assim, diga-se que as palavras preposição, advérbio e pronome são todas palavras complexas; no entanto, não são palavras compostas. Na verdade, duas delas – preposição e pronome – podem ser encaradas como palavras complexas  derivadas, ainda que a sua formação em português tenha aspetos históricos importantes:1

a) pre-+-posi-+-ção → preposição;2
b) pro-+nome → pronome.

Numa perspetiva do atual funcionamento da língua portuguesa, considera-se que a) e b) se enquadram em esquemas morfológicos que estão ativos no português contemporâneo, apresentando afixos (prefixos e sufixos) em uso na atualidade e relacionando-se, assim, com casos como prever (pre-+ver) e propor (pro-+por), que incluem, respetivamente, pre- (variante átona de pré-) e pro- (variante átona de pró-).

Quando a advérbio, sendo palavra complexa, não é composta nem derivada:

c) ad+-vérbio

Em c), o elemento -vérbio, embora reconhecível, não corresponde exatamente a uma palavra autónoma do português que seja produtiva na derivação prefixal de outras palavras; é certo que existem provérbio e prevérbio (cf. Dicionário Houaiss), mas não se identificam novos lexemas que exibam, como base de derivação, o elemento -v...

Pergunta:

A expressão correta é «vamos e venhamos» ou «venhamos e convenhamos»? Ou outra? Achei a primeira num livro hoje e me pareceu incorreta.

Grata.

Resposta:

Em textos brasileiros, verifica-se que se usa muito mais «venhamos e convenhamos» do que «vamos e convenhamos» (consultar corpora – ou seja,  coleções de  textos – na Linguateca), o que permite considerar que a forma mais adequada é efetivamente «venhamos e convenhamos» (exemplos retirados da Linguateca)*:

1 – «Vamos e convenhamos: um simples computador pessoal (PC) custa em média dois mil reais [...].»

2 – «Não nos interessa rever a aposentadoria na Previdência Social, piorando-a do ponto de vista dos trabalhadores, muito menos discutir alguns dos projetos que o Governo envia para cá como prioridade, como, por exemplo, o da responsabilidade fiscal que, venhamos e convenhamos, não passa de um mostrengo legislativo.»

Refira-se que a forma corrente Portugal é simplesmente «convenhamos» – como expressão intercalada, à semelhança do uso ilustrado em 2, ou a introduzir uma oração completiva («convenhamos que...»), no sentido de «reconheçamos (a verdade/oportunidade de alguma coisa)», como se infere das seguintes frases (retirados do corpus do jornal Avante, incluído na Linguateca):

3 – «Vasculha-se a memória e é um branco absoluto, um vazio, um buraco negro, enfim, uma ignorância, o que, convenhamos, é chato.» (corpus do jornal Avante, incluído na Linguateca)

4 – «Mas convenhamos com seriedade que a situação é análoga em outras urbes importantes.» (