Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Os nomes específicos das notas musicais (, , mi, , sol, , si) são considerados nomes comuns, correcto? Antes do Acordo Ortográfico de 1990, apesar de grafados em minúsculas, será que ,, mi,, sol,, si podiam ser classificados como nomes próprios, considerando que designam o nome individual de cada uma das notas, à semelhança do que acontecia com o nome individual dos meses do ano?

Resposta:

Os nomes em questão já eram considerados nomes comuns antes do Acordo Ortográfico de 1990 (AO).

A pergunta tem todo o sentido, mas a verdade é que, mesmo antes do AO, os nomes das notas musicais eram classificados como substantivos comuns tanto por dicionários (Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa, que Artur Bivar publicou em 1949; dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, de 2001) como por vocabulários ortográficos (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1940 e Vocabulário da Língua Portuguesa de 1966, da autoria de Rebelo Gonçalves).

Contudo, pode argumentar-se que os elementos deste conjunto são nomes próprios que se tornaram nomes comuns, tal como se faz na Gramática do Português (2013, pág. 1008), da Fundação Calouste Gulbenkian, obra em que se classificam como nomes próprios os que formam séries temporais:

«[São nomes próprios os] [n]omes de intervalos temporais convencionalizados, como os meses do ano (janeiro, fevereiro, março, outubro), as estações do ano (inverno, primavera, verão e outono), os dias da semana (sábado, domingo, segunda-feira) [...]. [...] [D]ado que, num contexto temporal mais vasto, estes períodos recorrem ciclicamente, deixam de ser únicos; talvez por isso, estes nomes, tal como os nomes comuns, adquiriram um significado lexical que se pode consultar num dicionário, deixando de ser sentidos como nomes próprios por muitos falantes. [...]»

Constituindo os nomes das notas musicais uma série semelhante às constituídas por intervalos temporais, parece legítimo atribuir-lhes um estatuto idêntico.

Pergunta:

No Dicionário Enciclopédico de Teologia, do Prof. Arnaldo Schüler (Editora da ULBRA, Canoas, 2002. p. 172), lemos, no verbete édito: «Ordem judicial tornada pública através de editais ou anúncios»; em edito, temos: «Paroxítono. Norma, lei, determinação oficial, decreto, ordem. P.ex.: Edito de Milão (q.v.). No direito romano, complexo de normas jurídicas.» A obra traz, como aponta a abreviatura q. v. (quod vide), o verbete "Edito de Milão".

Dicionários como o Caldas Aulete e o Priberam corroboram as diferenças conceituais apontadas para esses parônimos (não contemplam, todavia, o exemplo "Edito de Milão").

Minha dúvida reside sobre o assim chamado Edito de Milão. Além do compêndio de Schüler, sei que no meio eclesiástico (o "site" do Vaticano é um exemplo), é comum que se empregue o termo paroxítono para se referir ao decreto imperial que deu liberdade de culto a todos no Império Romano em 313, tornando, por conseguinte, o cristianismo uma religião lícita. A língua italiana também faz distinção (vide, p.ex., o Vocabolario Treccani on-line ou o Dizionario di Italiano on-line do Corriere della Sera) entre edito (pronúncia proparoxítona, com o mesmo sentido do nosso acentuado édito) e editto (pronúncia paroxítona, com o mes...

Resposta:

Parece tratar-se efetivamente de uma criação da língua portuguesa a existência de duas palavras divergentes que entroncam no mesmo vocábulo latino – edictum, «ordem, mandado (de pessoa particular); ordem, ordenação, regulamento; direito estabelecido por um edito; enunciado, exposição, elocução, enunciação» –, conforme se observa no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, no qual se acrescenta que edictum vem «do radical de edictum, supino de edicĕre "dizer em voz alta, declarar, fazer saber"».

A mesma fonte sublinha ainda que édito é uma criação do meio forense de língua portuguesa, e que, historicamente, apenas a forma edito teria legitimidade histórica:

«[A]o longo do século XIX, criou-se uma dicotomia entre edito e édito; já Constâncio (1836) registra edicto ou edito 'ordem pública, edital' de édito 'ordem, mandado do rei ou de outra autoridade que se afixa nos lugares públicos para que chegue a notícia a todos'; Aulete (1881) segue essa diretriz, e parcialmente Cândido de Figueiredo, que só dicionariza édito na acepção de Constâncio; Bluteau, por sua vez, no século XVII, só registra editto ou edicto 'ordem de um príncipe, República, Magistrado declarada publicamente' e dá como correspondente em latim edictum, i, de edicĕre, apresentando algumas locuções comuns no português, como por exemplo pôr um edicto latim edictum ponere, edictum affigere; Morais (1877) praticamente elucida a questão, registrando édito ou edicto (latim edictum) substantivo masculino 'ordem, mandado do príncipe ou magistrado que se afixa nos lugares públicos para que chegue a notícia a todos', cita um exemplo de Vieira ''proceder por éditos a encartamento...

Pergunta:

Distingo sem problemas bíblia (enquanto livro) de Bíblia (texto sagrado). A minha questão prende-se com esta última: por que razão surge frequentemente, até entre conceituados escritores, sem aspas ou sem itálico? Por que razão não segue as normas usuais de título de obra?

Resposta:

É uma convenção antiga, que se encontra registada, pelo menos, desde 1947, quando Rebelo Gonçalves, no seu Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (Coimbra, Atlântida - Livraria Editora, pág. 323), observou o seguinte:

«Há [...] títulos que podem dispensar, por força de usos tradicionais, tanto o sublinhado como as aspas (e, por consequência, também o itálico tipográfico) como é o caso dos títulos de certos livros sagrados universalmente conhecidos: Alcorão, Bíblia, Evangelho, Novo Testamento, Talmude, Velho Testamento, Vulgata, etc.»

Pergunta:

Em relação a uma pessoa cujo cônjuge morreu pode dizer-se «viuvou» ou «enviuvou»? Ou ambas as expressões são válidas?

Resposta:

Ambas as formas são legítimas. Note-se, porém, que enviuvar se usa com muito mais frequência, como sugere a remissão da forma viuvar para enviuvar, no Dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora (na Infopédia). Refira-se ainda que o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa só acolhe enviuvar, o que é elucidativo de como enviuvar é a forma que, pelo menos, em Portugal, mais se salienta. O Dicionário Houaiss (1.ª edição brasileira) não faz exatamente o mesmo, quando dá entrada aos dois verbos, mas define-os de modo muito semelhante até inclui enviuvar na própria definição de viuvar.  Isto sugere, portanto, que, também no Brasil, se dá maior relevo ao uso de enviuvar do que ao de viuvar.

Pergunta:

Devemos escrever «mau-humor» ou «mau humor»? Será possível indicar-me a regra que rege a forma correta?

Muito obrigado.

Resposta:

Deve escrever-se «mau humor», sem hífen.

Os compostos de substantivo e adjetivo são hifenizados em função de um critério subjetivo, segundo o qual são compostos e levam hífen aquelas expressões que encerrem um significado próprio, não redutível aos das palavras constituintes. Sucede que o critério se aplica com variações, ficando muitas vezes entregue à tradição dicionarística, o que significa que há muitas locuções que poderiam ser hifenizadas e não são. Por exemplo, mau-olhado tem hífen, mas «mau gosto» não o inclui. Tal é o caso, também, de «mau humor».

Sendo assim, tendo em conta as fontes consultadas, verifica-se que a expressão «mau humor» não tem entrada lexicográfica, mas pode fazer parte de um artigo de dicionário, como subentrada. É o que acontece no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, que regista «mau humor» no verbete que corresponde a mau e define a expressão como «estado de quem está agressivo ou irritado», juntando-lhe uma abonação de Júlio Dinis: «Ontem separámo-nos de tão mau humor que hoje acordei com remorsos.» (A Morgadinha dos Canaviais, Porto, Livraria Lello Lta., 1932, pág. 375).