Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Quando se utiliza o termo "don juan" como adjectivo, este deve ficar em minúsculas? Por exemplo: «aquele don juan brincou com os meus sentimentos.»

Resposta:

Pode usar o nome próprio como predicativo do sujeito, equivalendo a um adjetivo com essa função – «ele é um Don Juan» (ou «um D. Juan»), tal como diz «ele é um Einstein», para referir uma pessoa genial. A personagem de Don Juan, ou, mais precisamente, D. Juan Tenorio, foi criada pelo dramaturgo espanhol Tirso de Molina (1579-1648), que lhe deu os atributos de sedutor cruel que a imortalizaram na cultura ocidental. 

Refira-se, contudo, que dois dicionários portugueses (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa e dicionário da Porto Editora, em linha na Infopédia ) registam dom-joão como substantivo comum, com o significado genérico de «homem que seduz facilmente as mulheres». No dicionário Houaiss (1.ª edição, 2001), também se acolhe a entrada dom-joão, à qual se diz em nota que "donjuan" «foi mais corrente em Portugal»; contudo, as fontes portuguesas, não consignando esta forma, não confirmam a observação do dicionário brasileiro. Este regista ainda donjuán, mas em nota de uso observa-se que tem «emprego não raro irônico» e que «no Brasil [se usa] [...] diretamente o antropônimo castelhano antecedido de seu título, Don Juan, razão por que, ao escrever-se, devem empregar-se iniciais maiúsculas sem o hífen: ser um Don Juan, um sedutor incorrigível». Como foi dito inicialmente, mesmo em Portugal, o nome próprio espanhol também pode ocorrer com maiúsculas iniciais. E diga-se, por último, que existe uma versão portuguesa para o nome desta personagem-tipo – Dom João –, que justifica o substantivo comum dom-joão.

Pergunta:

Diz-se «todos os dias é Natal» ou «todos os dias são Natal»?

Resposta:

Diz-se da duas maneiras.

Considerando que «todos os dias» é sujeito, o verbo fica no plural:

1 – Todos os dias são Natal.

Contudo, «todos os dias» pode ser uma expressão adverbial (modificador do grupo verbal) sem preposição, e, nesse caso, o verbo fica no singular, tendo como sujeito «Natal»:

2 – Todos os dias é Natal.

Trata-se de uma frase equivalente a:

3 – É Natal todos os dias.

 

 

Cf. Doze deliciosas palavras deste Natal +  Els Caganers: a mais estranha tradição de Natal da Catalunha + O Natal de A a Z + Natal + Natal, como su...

Pergunta:

Existe a variante "ouriço-caixeiro"?

Obrigada.

Resposta:

Os dicionários não registam «ouriço-caixeiro», o que sugerem que a norma-padrão não a aceita, embora se trate de uma variante popular portuguesa efetivamente usada, provavelmente surgida por deturpação, por perda da noção do significado de cacheiro, palavra que, na oralidade, pode soar como caixeiro. Realce-se, porém, que cacheiro significa «que se esconde» ou «que se enrola», tal como ainda se encontra nos falares galegos, conforme descrição de um artigo da Wikipédia galega. Refira-se igualmente que o Dicionário da Real Academia Galega regista cacheiro na aceção de «[animal, planta] que se envolve sobre si mesmo», ilustrando este significado pela expressão «ourizo cacheiro»; e o Dicionário Estraviz classifica cacheiro como adjetivo nas aceções de «que se esconde ou oculta» e «ardiloso», além de o associar a ouriço, na denominação «ouriço cacheiro». Em Portugal, Cândido de Figueiredo (Novo Diccionario da Lingua Portuguesa, 1913, em linha como Dicionário Aberto) acolhia cachar, que tinha, entre outros significados, o de «esconder, tapar»; e quanto a cacheiro, entre outros usos, anotava que se diz «[...] do ouriço, (animal), que se esconde sobre os espinhos próprios». Tudo isto permite considerar ouriço-cacheiro forma mais antiga do que a variante popular «ouriço-caixeiro».

Pergunta:

Gostaria de ser esclarecido quanto à correcta utilização das expressões «tomar medicação» e «fazer medicação», com apoio nalguns exemplos. São expressões sinonímicas?

Obrigado.

Resposta:

São efetivamente expressões praticamente sinónimas e corretas, que podem ocorrer em contextos como os seguintes:

1 – «Ainda não tinha começado a tomar a medicação que adormente» (Maria Velho da Costa, Missa in Albis, Lisboa, D. Quixote, 1988, pág. 235, citado pelo Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa).

2 – «Refere que já está assim há 3 anos, embora já tenha feito medicação para o problema em causa» (Manuel Maria Gameiro Dias, Intervenção em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica num Centro de Dia do Concelho de Oeiras, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa/Instituto de Ciências da Saúde, 2011, pág. 200).

Apesar da relação muito estreita entre significados, os exemplos sugerem que «tomar a medicação» é equivalente a «tomar medicamentos», enquanto «fazer a medicação» (ou «fazer medicação», porque é possível omitir o artigo definido, tornando genérico o valor da expressão) é «fazer um tratamento que inclui medicamentos» – a diferença é, portanto, mínima, mas fica aqui assinalada. Cabe observar que, no caso de «fazer a medicação», não é de excluir a analogia com outra expressão, «fazer o/um tratamento», até porque medicação  vem a ser o mesmo que «tratamento terapêutico» (cf. medicação no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).

Pergunta:

Gostaria de saber se é correto dizer «autarquia local» ou se a expressão é redundante, pois, em meu entender, autarquia já tem um âmbito geográfico restrito a uma localidade.

Obrigado pelo vosso esclarecimento.

Resposta:

A palavra autarquia está já de tal maneira associada à administração local, que é legítimo pensar-se – como, aliás, o próprio consulente observa – que a expressão «autarquia local» se tornou redundante. Contudo, não se pode afirmar que «autarquia local» seja uma verdadeira redundância e que o seu uso esteja incorreto.

Por exemplo,  o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa regista «autarquia local», a par de autarquia sem adjetivação, constituindo os dois termos uma subentrada de autarquia, a que se atribui a aceção de «pessoa coletiva territorial, dotada de órgãos próprios e com autonomia, que visam a prossecução dos interesses comuns da população». No Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, autarquia tem vários significados, nem todos conotados com a noção de poder regional, mas, entre eles, conta-se o de «entidade administrativa com órgãos próprios e que actua com autonomia em relação ao poder central», ilustrando-se o respetivo uso com a expressão «autarquia local». Neste dois dicionários, portanto, «autarquia local» vem a ser um tipo de autarquia. Porém, o  dicionário da Porto Editora (em linha na Infopédia) já define autarquia apenas como gestão local, o que permite supor que juntar-lhe local corresponde a um pleonasmo: «1. entidade administrativa que prossegue os interesses de uma circunscrição do território nacional, através de órgãos próprios dotados de autonomia (em relação ao poder central), dentro dos limites da lei; 2. sistema económico de uma região que vive dos próprios recursos».

Não obstante, importa realçar que o uso da palavra autarquia não se reduzia – e ainda não s...