Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Estou com algumas dúvidas na identificação de classe de palavras na expressão: «uns pares de centenas de pessoas» – nesta expressão, «centenas» é um quantificador? Ou «uns pares» é quantificador e «centenas» é um nome (coletivo)?!?

Agradeço a vossa atenção.

Resposta:

Os casos que apresenta correspondem a quantificadores numerais, mas de um tipo especial, que se pode denominar «numerais cardinais especiais».

Ambas as palavras – par e centena – são quantificadores numerais, de acordo com o Dicionário Terminológico (DT), que elenca os termos a utilizar no estudo da gramática, no contexto dos ensinos básico e secundário em Portugal. Contudo, trata-se de quantificadores numerais que não são abordados diretamente pelo DT, nem aqui aparecem listados. Várias gramáticas escolares também não os mencionam; não obstante, na Gramática de Português (Porto Editora, 2011), de Vasco Moreira e Hilário Pimenta, faz-se referência a dezena e centena como palavras tradicionalmente classificadas como numerais coletivos, embora seja de notar que esta fonte não abrange par na descrição.

Observe-se que, fora do âmbito do DT, a gramática de Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova gramática do Português Contemporâneo, 1984, pág. 368) inclui centena entre os numerais coletivos. Mesmo assim, é preciso recorrer a uma descrição mais exaustiva, como o da Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pág. 934/935), para verificar que é possível integrar par e centena num tipo de numerais que esta gramática denomina «numerais cardinais especiais», ao mesmo tempo que menciona outras classificações conhecidas – «numerais coletivos» e «nomes quantificacionais». A mesma fonte sublinha ainda que «alguns destes numerais funcionam como expressões alternativas dos nomes comuns correspondentes, denotando simplesmente um número, independentemente das entidades que fazem parte do domínio de quantificação: par (2) [...]»; e acrescenta que este ...

Pergunta:

Em que contexto e com que modo e tempo se introduz a locução «mesmo se»?

Resposta:

A locução «mesmo se» introduz orações adverbiais concessivas em construções com valor hipotético cujos verbos podem ocorrer nos seguintes tempos e modos:*

– na oração principal: presente («saímos») ou futuro do indicativo («sairemos») ou, ainda, auxiliar ir no presente do indicativo + infinitivo («vamos sair»); na oração concessiva: futuro do conjuntivo («chover»).

Exemplo: «Mesmo se chover, nós saímos/sairemos/vamos sair.»

A mesma locução figura igualmente em construções com valor contrafactual, isto é, em que o conteúdo da oração concessiva contraria a situação efetivamente verificada; em tal construção, os verbos ocorrem:

– na oração principal: o condicional composto («teria visto») ou mais-que-perfeito composto do indicativo («tinha visto»); na oração concessiva: o mais-que-perfeito do conjuntivo («tivesse chegado»).

Exemplo: «Ele não teria visto/tinha visto o espetáculo, mesmo se tivesse chegado a tempo.»

Fonte da informação e dos exemplos: M.ª Helena Mira Mateus et al. Gramática da Língua Portuguesa (Lisboa, Editorial Caminho, 2003, 719/720).

Acrescente-se que o imperfeito do conjuntivo («chegasse«) é possível na oração subordinada, tal como acontece nas orações condicionais: «Ele não veria/via o espetáculo, mesmo se chegasse a tempo» (cf. construção condicional: «Ele não veria/via o espetáculo, se chegasse a tempo»).

* O caráter híbrido da construção com «mesmo se» permite incluí-la igualmente entre as orações concessivas. Na Gramática de Usos do Português (São Paulo,...

Pergunta:

Pergunto-vos se é correto e adequado elidir a conjunção se em períodos com o verbo no pretérito imperfeito do subjuntivo, como no exemplo em seguida:

«Tivéssemos acertado o relógio, não teríamos perdido o voo.»

Agradeço-vos antecipadamente vossa atenção.

Resposta:

No exemplo em questão, a primeira oração é uma oração adverbial condicional sem conjunção, estrutura que é correta e que está descrita tanto em gramáticas portuguesas como em gramáticas brasileiras.

Por exemplo, Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, 2002, pág. 507), referindo este tipo de construção como «orações justapostas de valor contextual adverbial», observa o seguinte (itálico no original):

«A justaposição pode, no nível do texto, apresentar [...] interpretações [...] condicionais: tenho o verbo no tempo passado (mais-que-perfeito do indicativo ou imperfeito do subjuntivo) anteposto ao sujeito:

Tivesse eu dinheiro, conheceria o mundo. [...].

Em tais casos, a segunda oração pode começar pela conjunção e:

Vencesse eu, e não me dariam o prêmio. [...].»

A frase em questão, que apresenta o mais-que-perfeito do conjuntivo na primeira oração justaposta, é portanto legítima, como legítimo é o condicional composto (futuro do pretérito composto) que ocorre na segunda oração justaposta.

Deve, no entanto, assinalar-se que, neste tipo de construção condicional, a oração que marca a condição costuma ter sujeito realizado («tivesse eu dinheiro...»), com inversão, isto é, com o sujeito a figurar depois do verbo. Mesmo assim, não é impossível atestar usos em que se omite o sujeito, como acontece num exemplo recolhido na Gramática da Língua Portuguesa (Editorial Caminho, 2003, pág. 730): «Trabalhasses pouco na Faculdade e terias/tinhas logo problemas.»

Pergunta:

Como saber que um nome é derivado de um verbo? Há alguma regra específica? Há nomes deverbais que selecionam complemento do nome. Por exemplo, na frase «a construção da ponte foi rápida», está presente um complemento do nome, «da ponte» , selecionado pelo nome construção. E na expressão «a morte do estrangeiro foi injusta», o segmento «do estrangeiro» é complemento do nome? Se sim, porquê? Morte é um nome deverbal? Ou trata-se de um modificador de nome restritivo?

Resposta:

Na expressão a «morte do estrangeiro», o sintagma «do estrangeiro» é complemento do nome morte. Neste caso, a formação da palavra e a sua relação morfológica com o verbo morrer podem explicar-se sobretudo numa perspetiva histórica, remontando ao latim ou até antes. Mesmo assim, numa perspetiva do funcionamento sincrónico do português contemporâneo, é legítimo considerar que ao nome morte se associa um grupo preposicional («morte do estrangeiro») cujo papel semântico é muito semelhante ao da expressão (argumento) que é sujeito do verbo correspondente, morrero estrangeiro morreu»).

A Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, pág. 1048/1049) assinala que se chamam «nomes eventivos» a todos os nomes que «representam situações que se localizam no espaço e no tempo», que "ocorrem" ou "acontecem"»; ou seja, existe um conjunto de verbos que tem como elementos mais típicos os nomes deverbais (os nomes que derivam de temas verbais), mas que pode integrar outros nomes, como observa a referida fonte:

«Para além dos nomes deverbais, há outros nomes que representam situações ou eventos localizados temporal e espacialmente; pense-se em substantivos como bodas (cf. o deverbal casamento), concerto, cortejo, doença, espetáculo, evento, férias, tempestade e até noite e dia. Alguns destes nomes podem ocorrer com expressões que correspondem semanticamente a argumentos (a adjuntos adverbiais): cf. as bodas do Pedro e da Lídia (comparar com o Pedro e a Lídia casaram-se) ou um ...

Pergunta:

Um aluno me perguntou o que significava «bicos de rouxinol» no texto de Vinicius de Morais «deram-me bicos de rouxinol para jantar».

Eu não sei o que significa.

Muito obrigada.

Resposta:

«Bicos de rouxinol» significa «comida ou prato delicado» e, em sentido mais lato, «mimos». São estas as aceções que se depreendem de uma ocorrência da expressão no livro O Homem (1887), do escritor brasileiro Aluísio Azevedo (1857-1913):

«Ele que lhe compre jóias; que se encarregue de vesti-la, de sustentá-la e de consolá-la. Tem obrigação disso; e, se não dispõe de meios, invente-os - trabalhe! Se não puder tratá-la a bicos de rouxinol, comam feijão com carne seca, que a senhora tem obrigação de contentar-se com o que ele lhe der!» (Aluísio de Azevedo, O Homem in Corpus do Português, coordenado por Mark Davies e Michael Ferreira)

No poema "Falso mendigo", de Vinicius de Moraes, a expressão contribui para a construção hiperbólica do sujeito poético como uma personagem caprichosa e centrada em si, em contraste com o âmbito doméstico e banal que é sugerido:

«[...] Liga para vovó Neném,
pede a ela uma idéia bem inocente
Quero fazer uma grande poesia.
Quando meu pai chegar
tragam-me logo os jornais da tarde
Se eu dormir, pelo amor de Deus,me acordem
Não quero perder nada na vida.
Fizeram bicos de rouxinol para o meu jantar?
Puseram no lugar meu cachimbo e meus poetas?
Tenho um tédio enorme da vida. [...]»

Note-se, porém, que, no Brasil, a expressão, se teve alguma vez uso mais extenso, parec...