Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na frase «independentemente de quem o escreveu, aprecio este livro», a expressão «de quem o escreveu» é complemento de advérbio?

Obrigado.

Resposta:

A sequência «de quem o escreveu» é efetivamente um complemento do advérbio. Os advérbios também podem ter complementos, o que traz o problema de, nessa eventualidade, poderem não ser claramente distinguíveis das preposições. Este aspeto é referido pela Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, pág. 1584):

«[...] [E]xiste uma afinidade estreita entre preposições e advérbios. Tipicamente, os advérbios distinguem-se das preposições pelo facto de não selecionarem um complemento, contrariamente às preposições, que precisam de uma expressão que lhes complete o sentido. [...] Existem, no entanto, alguns advérbios que, tal como as preposições, se podem combinar com complementos. [Contam-se] [...] cinco subclasses de advérbios que selecionam complementos (nos exemplos a seguir, sublinham-se os complementos): (i) alguns advérbios em -mente que preservam o complemento selecionado pelos adjetivos de que derivam (cf. paralelamente à avenida); (ii) advérbios como dentro, fora, perto, chamados advérbios relacionais, que se combinam com uma preposição, formando uma locução prepositiva (cf. fora da estação [...]); os advérbios mais, menos e tão/tanto, em construções comparativas (cf. o Pedro é mais alto do que a Maria); alguns advérbios avaliativos que podem ocorrer como predicadores selecionando um complemento oracional (cf. felizmente que a Maria já voltou); (v) alguns advérbios que funcionam como conjunções subordinativas adverbiais i. e., que selecionam complementos oracionais e formam juntamente com esses complementos uma oração subordinada adverbial (cf. [sempre...

Pergunta:

Qual o significado da expressão «flagrante delitro»?

Obrigado.

Resposta:

Trata-se da dedicatória escrita por Fernando Pessoa (1888-1935) no verso de uma fotografia que ele ofereceu à namorada, Ofélia Queirós (1900-1991) – cf. "'Em Flagrante de Litro', ou uma Segunda História de Amor", no blogue O meu Pessoa, de Ricardo Belo de Morais. Na imagem, aparece o próprio poeta a beber álcool, no ambiente popular do depósito da casa Abel Pereira da Fonseca, situação não propriamente prestigiante, que inspira um trocadilho entre jocoso e irónico com uma expressão mais convencional, «flagrante delito», termo jurídico que significa «facto punível que é descoberto no próprio momento em que é cometido» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa). O substantivo delito surge assim deturpado como "delitro", forma que não existe a não ser como jogo verbal que permite incluir litro e ativar a associação desta palavra ao seu campo lexical, ou seja, aos vocábulos ligados ao consumo de bebidas alcoólicas, como aguardente, vinho, garrafa ou copo.

Cf.: Fernando Pessoa: 10 da...

Pergunta:

Pergunto-vos qual é a diferença semântica entre histórico e historial?

Obrigado desde já!

Resposta:

Quando ambas as palavras são classificadas como adjetivos, o contraste semântico entre elas é nulo, se atendermos à sua definição em dicionário. A existir diferença, ela está em histórico se usar adjetivalmente muito mais do historial. Basta referir, por exemplo, que, no Corpus do Português não se regista nenhuma ocorrência de historial como adjetivo.

Quanto ao uso de histórico e historial como substantivos, é também mínima a diferença. Mesmo assim, dir-se-ia que a histórico se associa uma intenção de objetividade – designa-se sobretudo a cronologia de um conjunto de acontecimentos –, enquanto a historial se dá uma dimensão narrativa mais vincada, como que romanceada, conotando a palavra com uma visão mais subjetiva ou menos formal dos factos. Esta é uma conclusão que se recolhe da consulta de alguns dicionários e de coleções de textos eletrónicos (corpora):

– O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa define histórico, enquanto substantivo, em três aceções: «historiador», «parte histórica» e «relato cronológico dos factos»; é nesta última aceção que se indica a sinonímia deste vocábulo com historial.

– O dicionário da Porto Editora (na Infopédia) regista histórico apenas como adjetivo, enquanto historial, que consigna como adjetivo e como substantivo, está, no último caso, definido como «conjunto de factos cronológicos» e, no registo coloquial, como «narrativa longa ou enumeração detalhada dos factos». Est...

Pergunta:

Existe em português alguma maneira para saber quando os substantivos acabam em -ença ou em -ência? Para mim, como falante de espanhol, é um pouco complicado, porquanto em espanhol apenas existe o sufixo: -encia.

Obrigado.

Resposta:

Não há uma regra que permita prever com toda a segurança a ocorrência de -ença (ou -ança), de origem popular, em lugar de -ência (ou -ância), de origem erudita. Contudo, verifica-se que, geralmente, a adjetivos acabados pela sequência -ente correspondem nomes terminados em -ência (são muito menos os casos a que correspondem nomes com o outro sufixo: convalescente/convalescença; crente/crença; diferente/diferença; doente/doença; nascente/nascença; presente/presença)1. Além disso, nota-se que, na fase mais recente de evolução do idioma, -ência (com-ância) é mais produtivo na formação de palavras e, portanto, mais frequente, conforme se comenta no Dicionário Houaiss (desenvolveram-se as abreviaturas de uso menos generalizado):

«[-ência, sufixo] formador de substantivos abstratos oriundos de verbos outros que da 1.ª conjugação; como no caso de -ância e -ança, este é a forma culta paralela de -ença, que, a partir do Renascimento, se difunde de tal arte que de certo modo estanca a fecundidade de -ença: abnuência, abrangência, absorvência, abstergência, abstinência, acedência, acrescência, aderência etc.; numa relação de 455 palavras com esse -ência (já em explícita relação com verbos da língua, já em relação a formas latinas em que essa relação está obliterada, caso, p.ex., de excelência, magnificência, reverência), há sempre esse sufixo [...].»

Existem, assim, menos palavras formadas com o sufixo -ença do ...

A propósito de dicção, norma-padrão e regionalismos

Acerca de boa dicção e da pronúncia que esta pressupõe, recebeu o Ciberdúvidas um comentário de um consulente (ver resposta de José Mário Costa, no Correio de 20/11/2015), o qual considera que, por respeito ao público e credibilidade, o português usado na televisão e na rádio deve ser neutro e sem regionalismos; e acrescenta: «Este português neutro é artificial, ou seja, não pertence a nenhuma região, nem sequer à própria Lisboa nem a Coimbra.» (...)