Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Como explicar de forma clara e inequívoca que alguns grupos adjetivais são complementos de nome e outros modificadores restritivos do nome? Por exemplo, na frase «a pesca baleeira está em declínio», o grupo adjetival é dado pela gramáticas como sendo um complemento do nome, e, na frase «os escritores portugueses são excelentes», o grupo adjetival tem função de modificador.

Porquê? São ambos adjetivos relacionais...

Obrigada

Resposta:

Um adjetivo relacional só marca um complemento do nome, se o nome a que se associa selecionar um complemento do nome.

Por exemplo, o nome pesca, como nome que se forma por derivação regressiva de pescar, mantém ("herda" do verbo, por assim dizer) um complemento que corresponde ao complemento direto de pescar («pescar baleias»). Sendo assim, o adjetivo relacional apresenta-se em condições de marcar o complemento do nome, conforme a seguinte equivalência: «pesca de/da baleia» = «pesca baleeira».

Pergunta:

Esta pergunta é mera curiosidade: por que razão histórica/linguística é que o e, como em «eu e tu», é pronunciado "i"?

Resposta:

É provável que, na língua da Idade Média, a conjunção e tenha correspondido a uma vogal menos fechada do que [i], como o é de ou o ê de . Era essa a hipótese defendida pelo filólogo português José Leite de Vasconcelos (1858-1841), conforme a seguir se transcreve (citado por José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1987, s. v. e; mantém-se a ortografia do original)1:

«[...] [A] conjunção portuguesa e soa hoje i, mas deve, em português antigo, ter tido o som de é ou ê;: cfr. ê em galego, é em espanhol antes de palavras que comecem por i, et em francês, e (et, ez, es, etc.) em provençal, e e ed em italiano. Suponho que temos um vestígio da antiga pronúncia portuguesa na familiar locução beirã "um tudenada entre dois pratos", que corresponde à espanhola "nada entre dos platos", que querem dizer "pouca cousa". Quanto a mim, "tudenada" corresponde a tud'e nada onde o e devia soar ê, pois só por ele se explica o e surdo de tudenada. A conjunção portuguesa outrora soava i sòmente antes de vogal (cfr. di ontem, por de ontem), mantendo-se a primitiva pronúncia (é, ê) antes de consoante (cfr. de ti); depois a pronúncia i generalizou-se a todos os casos, isto é: quer antes de vogal, quer também antes de consoante. Em tudenada perdera-se a consciência de que o era conjunção, porque esta expressão apareceu no espírito como se fosse palavra simples, em que o e tinha o valor de qualquer e interior, sem que houvesse motivo espacial para se mudar em i2

Pergunta:

Tenho algumas dúvidas sobre a formação do feminino do nome tigre. Já consultei algumas gramáticas e dicionários que apontam para «tigre fêmea» como sendo a forma correta (como é o caso da Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha). No entanto, em alguns casos, também se verifica a forma tigresa como sendo o feminino de tigre. Devo aceitar tigresa como feminino de tigre?

Resposta:

Pode aceitar-se a forma tigresa, mas deve ter-se em atenção que, até agora, ela é sobretudo registada pela lexicografia do Brasil – o que não quer dizer que o vocábulo tenha uso generalizado entre falantes brasileiros. Com efeito, há vários dicionários elaborados no Brasil (cf. Dicionário Houaiss, dicionário Aurélio XXI, Dicionário UNESP do Português Contemporâneo, Dicionário Aulete Digital)2 que acolhem tigresa como feminino de tigre.  Porém, nos dicionários e vocabulários ortográficos3 elaborados em Portugal, a palavra nem sempre aparece; quando é registada, pode não ser acompanhada de qualquer marca de uso (caso do Vocabulário Ortográfico do Português e do dicionário Priberam) ou acontece ser classificada como brasileirismo (dicionário da Porto Editora e dicionário de José Pedro Machado). Tudo isto leva a crer que, em Portugal – e, depreende-se, nos outros países de língua portuguesa que, até aqui, se baseiam na norma lusitana contemporânea –, não se emprega tigresa4  como feminino de tigre e que, querendo especificar género, tigre-fêmea é a palavra que ocorre.

1 Observe-se que, no Dicionário de Usos do Português do Brasil (São Paulo, Ática, 2002), cujas atestações são retiradas de textos contemporâneos brasileiros, muitas vezes não literários, não consta a entrada tigresa, nem esta é forma contemplada no verbete correspondente a tigre. A ausência...

Pergunta:

Qual é a vossa opinião sobre a utilização simultânea dos pronomes vocês e vós num mesmo texto? Seria incoerente empregar vocês como sujeito, a fim de se evitar a conjugação da segunda pessoal do plural, ao mesmo tempo que se utiliza vós nos demais casos, sobretudo como complemento? Passo a apresentar alguns exemplos:

(1) Se [vocês] forem ferozes como eu sou, os miúdos do bairro também terão medo de vós.

(2) Ao contrário de vós, que fazem sempre as coisas à vossa maneira, eu consulto sempre o patrão antes de fechar qualquer negócio.

(3) [Vocês] Acham que mais alguém além de vós vai aparecer na festa?

Resposta:

O uso em referência não é aceite pela norma, porque, depois de preposição, a forma pronominal correspondente a vocês (usada como sujeito) é também vocês. Sendo assim, espera-se que, nas frases em questão, ocorra sempre «de vocês», e não «de vós».

Observe-se, no entanto, que, desde há alguns anos, no Portugal onde a forma de tratamento vós já não é hábito, os falantes mostram alguma relutância em empregar vocês como sujeito de frase, procurando, tal como acontece com você, que a forma de tratamento nunca seja instanciada; ou seja, recorre-se às formas verbais de 3.ª pessoa, mas não se realiza o sujeito. É, portanto, muito mais prudente (e até delicado) perguntar a alguém «não se quer sentar?», sem explicitar a forma de tratamento, do que dizer, interrogando, «você não se quer sentar?».

Este comportamento estende-se aos pronomes associados a esta forma de tratamento depois de preposição, e a solução encontrada tem sido mais recentemente usar vós, em paralelo com o que acontece com as formas -vos e vosso, num uso que é muito frequente, mas duvidoso («voltem aos vossos lugares para eu poder dar-vos novas instruções», quando, do ponto de vista normativo, deveria ser ««voltem aos seus lugares para eu poder dar-lhes novas instruções»). Trata-se de uma situação muito curiosa – repita-se, não aceite pela norma –, porque passam a empregar-se quase todos os pronomes correspondentes ao tratamento por vós, exceto exatamente o

Pergunta:

«Ex.mo/a (s)»,«Exmo/a. (s.)» ou «Exmo/a (s)», «Sr.», «Sra.», «Srs.», «Sras.»? E o plural da abreviatura: «V. Exa.»? «VV. Exas.»?

Pelo que tenho lido, hoje em dia vale um pouco de tudo, no entanto quando se questionam os responsáveis por protocolos e endereçamentos oficiais e institucionais não conseguem nem citar fontes nem justificar o uso desta ou daquela abreviatura.

Grata pela vossa atenção.

Resposta:

Em relação às abreviaturas, não parece que «valha um pouco de tudo», mas verificam-se realmente oscilações nas suas formas, desde há muito tempo – mesmo nos anos 40 do século passado.

É verdade que o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1940 apresenta um "Registo de abreviaturas", no qual podem encontrar-se as abreviaturas em questão1:

1 – Ex.ᵐᵒ, Ex.ᵐᵃ

O plural desta abreviaturas não consta desse "Registo...", mas infere-se que o s deverá ocorrer também sobrescrito:

 2 – Ex.ᵐᵒˢ, Ex.ᵐᵃˢ

Quanto a senhor(es) e senhora(s), o mesmo registo apresenta:

3 – Sr. (forma preferível, mas também se regista Snr. e S.ᵒʳ) – Srs. (ou Snrs., não constando forma "S.ᵒʳᵉˢ");

4 – Sr.ᵃ (forma preferível, mas também se regista Snr.ᵃ) –  Sr.ᵃˢ (ou Snr.ᵃˢ).

Finalmente, em relação a «Vossa Excelência», a fonte em referência apresenta:

5 – singular: V. Ex.ᵃ; plural: VV. Ex.ᵃˢ.

Na atualidade, em Portugal, apenas o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Porto Editora (versão impressa publicado em 2009) inclui uma lista de abreviaturas (o VOLP da Academia Brasileira de Letras tem a sua lista também). Pode dizer-se que as formas que aí figuram são já uma simplificação das acima indicadas, consagrando certas práticas que se generalizaram, como sejam a passagem do o, do a e s