Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber qual é o plural de incipit. Sendo latina a raiz da palavra, se não estou em erro, a terceira pessoa do singular do verbo incipěre, permanece incipit quando utilizada numa acepção plural? A minha dúvida decorre do facto de já ter visto esta forma utilizada como plural, assim como li "incipites" num outro contexto (o que significaria que a origem é substantiva...?).

Grata desde já pela ajuda!

Resposta:

A palavra incipit , pronunciada "íncipit" ou "ínquipit"1, é uma forma verbal latina que, em português, se emprega como designação genérica de «termo ou grupo de palavras (p.ex., verso inicial) que identifica um texto, um poema etc. sem título» (Dicionário Houaiss). Ocorre sempre em itálico e, em princípio, não tem plural morfológico, ou seja, a palavra é invariável: «o incipit»/«os incipit».

Contudo, tendo em conta que, no caso de habitat, se encontram formas de plural que a norma ainda não fixou (ver também Maria Helena de Moura Neves, Guia de Uso do Português, Editora UNESP, 2003), é de supor que o plural de incipit ocorra, pelo menos, na forma mais óbvia, juntando um -s: "incipits". Embora na língua espanhola se aceite atualmente o plural íncipits (singular íncipit), a verdade é que, em português, no âmbito dos seus padrões morfológicos e dos pincípios da sua tradição ortográfica, não é possível formar um plural de um nome comum acabado em -ts – seria sempre necessário a vogal e em posição final. Por isso, afigura-se mais prudente recomendar o uso invariável de incipit («o incipit»/«os incipit»).

1 Corrigi a descrição da pronúncia desta palavra, na sequência de um reparo do consulente Giovanni Saponaro, a quem agradeço por assinalar que a palavra é proparoxítona em latim, ou seja, tem acento tónico na primeira sílaba, conforme se regista no Dicionário Italiano-Português da Porto Editora e no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Também agradeço ao consultor ...

Pergunta:

Que significado poderá ter a palavra busões na frase seguinte : «[T]odas essas cantilenas são cheias de busões, fanatismos, superstições, terrores e corcundismos.»

Muito obrigado.

Resposta:

A forma busão* é uma variante de abusão, (cf. Artur Bivar, Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa, 1949),  que significa genericamente «ilusão» e «superstição» (cf. Dicionário Houaiss). Regista-se também uma outra forma que tem sentido próximo – trata-se de avejão, que designa «[um] espectro mal-assombrado; fantasma, assombração, avantesma» e, em sentido figurado, «homem de grande estatura e muito feio» (idem). Abusão e avejão são vocábulos que podem ser encarados como variantes um do outro, até porque têm a mesma origem: «lat. *avisio, onis 'visão, fantasma'» (idem).

Refira-se que tanto abusão (ou busão) como avejão são atualmente palavras pouco usadas, de sabor arcaico. A forma busão ocorre na frase em referência justamente porque esta faz parte de um escrito da primeira metade do século XIX, da autoria do brasileiro Ezequiel Corrêa dos Santos e publicado na Nova Luz Brasileira Extraordinaria, n.º1, de 24/12/1829 (citado por  Marcello Basile, "Ideias radicais no Rio de Janeiro regencial: elementos para um debate", Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, julho 2011, pág. 8).

* No calão/gíria do português do Brasil, a forma busão é o mesmo que ônibus (autocarro).

Pergunta:

No capítulo X de Amor de Perdição [de Camilo Castelo Branco] refere-se que «o padre capelão» estava no «raro lateral da porta». Qual o significado de "raro" enquanto nome? Só encontro nos dicionários como adjetivo e advérbio.

Muito obrigada.

Resposta:

No contexto em questão, raro é variante de ralo (ver o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, e o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).

Ralo tem, entre outras aceções, a de «placa com orifícios, ou grade, colocada nas portas, nas janelas dos conventos, nos confessionários etc., através da qual se pode observar o que se passa fora, sem ser visto, ou se comunicar com alguém evitando contato direto». É nesta aceção que raro ocorre no texto camiliano, visto ser a referencialmente mais adequada. Com efeito, a ação narrada decorre na portaria dum mosteiro, aonde chega Mariana; e um padre conversa com uma freira – «a prioresa» – havendo entre eles uma porta com um ralo, isto é, uma grade, através da qual conseguem comunicar. Depreende-se que a freira  está no lado de dentro da porta, porque se diz que o padre apreciava a beleza de Mariana, enquanto tinha «outro [olho] no raro, onde a ciumosa prioresa se estava remordendo». Refira-se também que raro é a forma que ocorre efetivamente em Amor de Perdição, mesmo na sua 1.ª edição, de 1862 (p. 115).

Pergunta:

Podiam-me esclarecer como se deu a evolução da palavra ilha? Evoluiu, simplesmente de insŭla-, ou houve versões intermediárias? Por que o N latino se perdeu normalmente, mas o L não? E como foi parar lá o dígrafo lh?

Obrigado.

Resposta:

A palavra ilha não é resultado direto da evolução do latim ĪNSŬLA para o português.

Com efeito, os dicionários referem que o vocábulo terá origem noutro, de origem catalã – illa – o qual terá alcançado esta forma a partir do latim ĪNSŬLA. Diz o Dicionário Houaiss:

«[Do] laim insŭla, ae 'ilha, quarteirão cercado de ruas que o isolam do resto da cidade como o mar isola a ilha do resto das terras', por extensão [semântica] 'casa para alugar, ger[almente] uma pequena ilha pertencente a um mesmo proprietário que residia em seu centro', pelo catalão illa [...]

A mesma fonte acrescenta:

«[H]á a forma divergente "ínsua" (sXIII) mais consentânea com o étimo e documentada um século antes de ilha, mas o elemento inicial in-/i- faz supor que se trate de semicultismo; atribui-se à influência do espanhol e do catalão sobre o português a fixação da forma ilha e, nos derivados, uma equiparação dos radicais espanhol isl(a)- e português ilh(a)-.»

Sobre a palavra ilha, importa também saber o que se diz sobre a palavra correspondente no galego, no qual se escreve geralmente illa (há também quem escreva à portuguesa, ilha). Um linguista galego (Manuel Ferreiro, Gramática Histórica Galega, Edicións Laiovento, 1996, p. 165, n. 186), confirma a etimologia atribuída no Dicionário Houaiss:

«A forma illa (<ĪNSŬLA), seguramente importada do catalán, está especializada semanticamente ('do mar') fronte a insua ('do río').»

Quer isto dizer que a palavra chegou ao português (e ao galego) já com uma configuração...

Pergunta:

Começo por vos dar os parabéns pelo vosso trabalho!

Na frase «[o cão] aninhava-se a seu lado», qual a função sintática desempenhada pelo grupo preposicional «a seu lado»?

Resposta:

Agradecemos as suas palavras de apreço.

Trata-se de um complemento oblíquo. O verbo aninhar, usado pronominalmente (aninhar-se) e a significar «acomodar-se» e «esconder-se», seleciona um complemento oblíquo, conforme a descrição e classificação de Malaca Casteleiro, que, no seu Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses (Texto Editora, 2007), apresenta os seguintes exemplos:

1 – Após, o jantar, o tio gosta de se aninhar no sofá.

2 – A casa aninha-se entre o arvoredo.

O facto de aninhar-se ter muitas vezes regência construída com a preposição em não impede que se usem outras preposições – como acontece em 2 – ou locuções prepositivas, como se verifica com «ao lado de» no caso em questão.