Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
405K

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Será que me sabem explicar de onde vem a expressão «mereces tudo e um par de botas»?

Um muito obrigada de antemão.

Resposta:

Conhecemos a expressão, mas desconhecemos as circunstâncias que lhe deram origem.

Nas fontes a que temos acesso, não encontramos a expressão «merecer tudo e um par de botas». Contudo, regista-se a expressão «par de botas» com o significado de «problema complicado» quer como entrada (ver Orlando Neves, Dicionário de Expressões Correntes, e Afonso Praça, Novo Dicionário de Calão; neste último, dá-se um exemplo: «não sei como hei de descalçar este par de botas»), quer como subentrada (ver dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). Além disso, «tudo e um par de botas» costuma ser locução interpretada como o mesmo que «tudo e o seu contrário», como se deixa explícito na seguinte passagem de um artigo de opinião:

1 – «[...] querem ter todos os direitos e privilégios dos funcionários públicos, mas ao mesmo tempo todas as prerrogativas de quem integra um órgão de soberania. E isso, ter tudo e o seu contrário (ou, usando a linguagem popular, "tudo e um par de botas"), é que não é admissível» (José Miguel Júdice, "Tudo e um par de botas", Público, 17/09/2005).

Contudo, há quem atribua outra intenção, como propõe o consultor Paulo J. S. Barata (comunicação pessoal), que assinala a variante «merecer tudo e mais um par de botas» e considera que a expressão significa  «tudo e mais alguma coisa» ou «tudo e o mais que for»/«tudo e mais que seja», funcionando «como uma espécie de nonsense hiperbólico, já que tudo não admite mais nada – é o tudo e mais algo de "irreal"». De certo modo ao encontro desta interpretação, o consultor Gonçalo Neves (comunicação pessoal) também dá o seu contributo e interroga-se sobre a possibi...

Pergunta:

Gostaria de saber o significado da expressa popular «isso é boca para (pra) barulho».

Obrigado.

Resposta:

A expressão «boca para barulho» não parece ser muito antiga – pelo menos, os dicionários de expressões populares e gíria de que dispomos não a registam. Mas verifica-se que ocorre em comentários a blogues e em redes sociais - ao que parece, apenas usada por falantes de Portugal – no sentido de «provocação», como se depreende dos seguinte exemplo:

(i) «Esta é boca para barulho... mas se calhar mais vale ser dragão do que leão.»

Note-se que boca, tal como ocorre na expressão «mandar uma boca» – «comentar em voz alta; opinião foleira; aparte brejeiro» (definição de Afonso Praça, Novo Dicionário do Calão, Lisboa, Casa das Letras, 2005) –, significa «observação ou comentário». Deste modo, «(uma) boca para barulho» será «um comentário provocador com o qual se pretende gerar uma grande discussão».

Pergunta:

Gostava de saber se, na frase «não conseguiu fazer aquela revolta», em que a palavra revolta toma por significado «curva», é usada corretamente ou é apenas um regionalismo.

Resposta:

A palavra está correta e é um regionalismo. Note-se que, embora se trate de um regionalismo, não contraria ele a possibilidade de ser considerado correto. Pelo contrário, tal apenas significa que tem uso de âmbito regional, sem fazer parte do conhecimento lexical de todos os falantes do português.

Três dicionários – o de Cândido Figueiredo, na sua edição de 1913; o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, na edição de 1991, pelo Círculo de Leitores; e o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, publicado em 2001 – dizem ser proveniente do Minho. Nestas três fontes, a palavra é definida como o mesmo que volta ou «curva do rio».

É de assinalar que revolta, com este significado, faz parte do chamado património lexical comum ao português e ao galego, visto que o portal Tesouro do Léxico Patrimonial Galego e Português ilustra o emprego dessa forma na referida aceção ou em aceções afins com exemplos provenientes quer da Galiza quer de Portugal. O Dicionário da Real Academia Galega também acolhe revolta em aceção semelhante: «Cambio moi pronunciado na dirección dun camiño, estrada etc.». Finalmente, o Dicionário Estraviz define revolta de modo similar: «Volta ou curva de um rio ou caminho».

Pergunta:

No livro da [escritora espanhola] Julia Navarro* é utilizado o termo assentamento para a implantação dos colonatos judeus. É correcto neste contexto a utilização de assentamento?

[OBS.: A consulente parece referir-se à tradução do romance Dispara, yo ya estoy muerto.]

Resposta:

A palavra assentamento  parece ter sido usado como tradução literal do espanhol asentamiento, que, entre outras aceções, também significa «lugar em que se estabelece alguém ou alguma coisa» (ver Diccionario de la Lengua Española, da Real Academi Espanhola).

A palavra portuguesa correspondente, assentamento, pode, como a espanhola, ser usada em referência a um «núcleo de povoamento» (Dicionário Houaiss), o que deixa supor que a tradução literal não corre o risco de ser classificada como uma opção induzida por falsos amigos de duas línguas diferentes.  Note-se, porém, que este significado não é assim tão frequente nos dicionários elaborados em Portugal, não estando registado, por exemplo, no dicionário da Porto Editora, nem no da Priberam, nem no da Academia das Ciências de Lisboa. Tudo isto poderia sugerir que, em Portugal, assentamento não pode ou não costuma ter grande uso como sinónimo de povoação.

Mas a verdade é que a palavra tem utilização na investigação que, em História e Arqueologia, é produzida em língua portuguesa.  Além disso, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, registam-se duas aceções que parecem próximas do significado da palavra espanhola: «sítio ou situação de uma extensão de terra», «habitação, morada, residência». Estes significados aparecem ainda no Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa (Edições Ouro, Porto, 1948), de Artur Bivar, que define assentamento também como «assento, lugar onde fica depositada qualquer coisa, ou onde se...

Pergunta:

Como devemos construir uma frase com a palavra «antídoto»? Dizemos «antídoto de», «antídoto para» ou «antídoto contra»?

Muito obrigado.

Resposta:

Pode usar-se qualquer uma das preposições, como atesta um exemplo do Dicionário Houaiss: «o carnaval é seu antídoto da (para, contra) tristeza».

Também no Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos (São Paulo, Globo, 1995), de Francisco Fernandes, se registam as referidas preposições como as que constroem a regência deste substantivo.