Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
405K

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Agradecia que me esclarecessem se a palavra liberdade tem algum sufixo.

Grata pela atenção dispensada.

Resposta:

Na forma liberdade pode reconhecer-se uma variante do sufixo -idade, embora o referido substantivo não seja um caso típico das palavras assim sufixadas.

Com efeito, no vocábulo, o segmento -dade é identificável com o sufixo -idade, à semelhança do que acontece, por exemplo, com a sufixação de beldade. No entanto, é controverso classificar o morfema liber- como base da derivação de liberdade, ainda que ele se associe ao adjetivo livre. Contudo, sabendo que os nomes sufixados com -idade se associam aos radicais dos adjetivos (p. ex., digno – dign- + idade → dignidade), pode sugerir-se que se trata de uma palavra complexa não derivada, tal como acontece por exemplo com palavras como conceber (cf. M.ª Graça Rio-Torto e outros, Gramática Derivacional do Português, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013, pág. 90). Convém ainda assinalar que há descrições que tomam liberdade não como palavra formada em português, mas, sim, adaptação do latim libertate. Em suma, pode aceitar-se que -dade é sufixo, mas revela-se difícil incluir liberdade entre os derivados sufixais formados em português.

Pergunta:

«A Web Summit Lisboa é a nossa melhor oportunidade depois da Expo-98», era o título da entrevista publicada na Revista do Expresso do passado dia 9/01 ao secretário de Estado da Indústria e (assim identificado) ex-diretor executivo da Startup Lisboa, João Vasconcelos. E, mais adiante: «(...) O poder montar um negócio em Portugal e na semana seguinte ter um cliente no Japão era uma coisa que dantes não era possível. É importante sublinhar que nem todas as startups se tornarão empresas: muitas delas estão a desenvolver um produto, uma feature, e esse produto ou feature será comprado por alguma empresa para os incorporar na sua oferta. (...)» Web Summit, startup, feature. Pergunto: nenhuma destas palavras tem tradução portuguesa, ou trata-se só de mais um (mau) exemplo de um governante português preferir o inglês ao idioma nacional?

Resposta:

1. Web Summit1

Web Summit é o nome de um encontro internacional organizado anualmente por empresas irlandesas (em 2015, Connected Intelligence Limited). Trata-se de um nome próprio resultante da conversão da expressão «web summit», que literalmente é o mesmo que «cimeira da/na rede», «cimeira da/na Web» ou «cimeira da/na Internet»; pode ainda sugerir-se «cimeira web», com web empregado adjetivalmente e em itálico (ou aspas). Como Web Summit se comporta como nome próprio, não tem, em princípio, tradução. Mesmo assim, esse estatuto não o dispensa de se ligar a outro nome próprio, seguindo a sintaxe portuguesa: «a Web Summit de Lisboa» (apesar de, em certos eventos, se observar a omissão da preposição, como sucede com o Moda Lisboa).

2. Start-up

Uma tradução recorrente é «empresa emergente» (existe solução homóloga em espanhol), no sentido de empresa que procura inovar no mercado, apoiando-se na tecnologia.2

3. Feature

É palavra traduzível de diferentes formas, mas, no contexto das empresas emergentes, encontra equivalente em recurso (ver Proz.com) e funcionalidade (Linguee). Este último termo português é polissémico (vários significados) e, revertendo ao inglês, pode encontrar outras traduções (por exemplo, functionality; cf....

Pergunta:

Morfologicamente, trio é um substantivo coletivo? Ou um numeral coletivo?

Resposta:

Pode considerar-se – e muitas gramáticas assim o fazem – que trio é um numeral coletivo.

Dicionário Terminológico não inclui os numerais coletivos entre os quantificadores numerais. Há gramáticas que não chegam a classificar palavras como trio ou dezena como coletivos; mas, por exemplo, no caso da Moderna Gramática Portuguesa (Editora Lucerna, 2003, pág. 204), de Evanildo Bechara, é dito que se trata de numerais que têm analogia com os coletivos, com a diferença de definirem a quantidade.

No entanto, há várias gramáticas que incluem par e dezena numa série que forma a classe dos numerais coletivos (ver P. Teyssier, Manual de Língua Portuguesa, Coimbra Editora, 1989, pág. 185). Mais recentemente, a Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, pág. 926/927) apresenta par, trio, quadra, quinteto, dezena, etc. como uma série que constitui os numerais coletivos.

Em suma, trio é geralmente tratado como coletivo e afigura-se legítimo classificá-lo entre os numerais coletivos, o que não impede que outras gramáticas lhe atribuam outra classificação.

Pergunta:

Estou com dúvidas na construção desta frase: «O inacreditável esplendor e beleza daquela vista deixavam-nos de coração cheio.»

Atendendo à concordância em número, não sei se deveria escrever: «Os inacreditáveis esplendor e beleza daquela vista deixavam-nos de coração cheio.» Julgo que não, mas a questão é que o adjectivo «acreditável» refere-se tanto a «esplendor» como a «beleza». Por outro lado, creio ter ouvido um linguista explicar há tempos que, quando o objecto não é quantificável (quando não tem limites concretos), está correcto manter tanto o adjectivo como o verbo no singular, ainda que a frase refira mais do que um desses objectos. Qual a resposta correcta? E qual a explicação?

Muito obrigado.

Resposta:

A sequência «o inacreditável esplendor e beleza» está correta.

Para esta resposta, não foi possível identificar o preceito que o consulente atribui a certo linguista, mas, tendo em conta Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, Editora Lucerna, 2003, pág. 545/546), é possível dizer/escrever «o inacreditável esplendor e beleza daquela vista...», tal como se diz «toda a sua luta e sacrifícios» ou «com boa coragem e zelo. É de realçar que neste últimos exemplos se coordenam substantivos de géneros diferentes, ao primeiro dos quais se associam determinantes e adjetivos que abrangem semanticamente o segundo termo coordenado. Note-se, contudo, que Bechara aceita também casos semelhantes a «os inacreditáveis esplendor e beleza daquela vista...», porque regista sem comentar desfavoravelmente a seguinte sequência: «bons coragem e zelo».

Pergunta:

Qual é a forma correcta?

«Não era o que ela conjecturava, a ideia que fazia das suas quedas, dos seus vícios, da sua vida que o irritava, mas a permissividade que se autorizava de o querer admoestar.»

ou

«Não era o que ela conjecturava, a ideia que fazia das suas quedas, dos seus vícios, da sua vida que o irritava, mas a permissividade que se autorizava em o querer admoestar.»

Com os meus agradecimentos.

Resposta:

Revela-se estranha a ocorrência do substantivo permissividade com uma oração completiva introduzida por preposição, porque esta palavra, ao contrário de permissão, não tem correspondência direta com o verbo permitir:

1 – Saiu do quartel, com permissão de/para voltar depois da meia-noite.

2 – Saiu do quartel, com permissividade de/para [?] voltar depois da meia-noite.

Comparando 1 com 2, verifica-se que só 1 está em estreita correspondência com permitir: «Saiu do quartel, tendo-lhe sido permitido voltar depois da meia-noite.» Em 2, aparece permissividade, palavra derivada de permissivo, adjetivo que, embora evidencie óbvia afinidade morfológica e semântica com permitir e permissão, se aproxima também do significado e da sintaxe do adjetivo tolerante, mas juntando a este uma apreciação negativa (cf. uma das aceções de permissivo no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa: «que admite facilmente, que tolera certos comportamentos, certas práticas que outros reprovariam ou não permitiriam»). Neste contexto, convém assinalar que, ocorrendo permissivo com complementos, são geralmente a preposição com ou a sequência de preposições para com que os introduzem («permissivo com/para com os abusadores») e serão estas também as palavras a que se associará permissividade se houver que usar preposições («permissividade com/para com os abusadores»).

Tendo, porta...