Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
404K

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Por que alguns autores, em relação ao grau de abertura/timbre das vogais, dizem que podem ser fechadas ([i] e [u]), semifechadas ([ê] e [ô]), semiabertas ([é] e [ó]) e abertas ([a]); enquanto outros, porém, dizem que elas podem ser abertas ([a], [é] e [ó]), fechadas ([ê], [ô], [i] e [u]) e reduzidas ([a], [i] e [u])?

Qual é o certo? Ou eu que não entendi direito quanto ao timbre?

Desde já, obrigado.

Resposta:

São terminologias diferentes e ambas são aceitáveis, mas a segunda tem implantação no ensino não universitário do Brasil.

Convém começar por dizer que, na descrição mais tradicional da língua, o termo timbre se define como o «efeito acústico relacionado com os graus de abertura da cavidade bucal, nomeadamente na pronúncia das vogais» (Infopédia).

A primeira série de termos – abertas, semiabertas, semifechadas e fechadas – é a que figura na Nova Gramática do Português Contemporênea (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, p. 35). Nesta proposta, o a de gato é uma vogal aberta (símbolo fonético: [a]); o e de seta e o o de amora são vogais semiabertas (símbolos fonéticos [ɛ] e [ɔ]); o e de cedo, o de autor e o a de moda são vogais semifechadas (símbolos fonéticos [e], [o] e [ɐ]); o i de mil e o u de sul são vogais fechadas (símbolos fonéticos [i] e [u])1.

A segunda série terminológica mencionada pelo consulente – abertas, fechadas e reduzidas – é a que consta da Nomenclatura Gramatical Brasileira de 1959 e parece ter grande aceitação nas gramáticas gerais elaboradas no Brasil2. Nesta classificação, são vogais abertas os segmentos representados por [a], [ɛ] e [ɔ]; fechadas são [e], [o], [i] e [u]; e reduzida, a vogal [...

Pergunta:

Há a possibilidade de, na evolução de totu- para todo, aceitar a dissimilação como hipótese de processo fonológico? Ou apenas a sonorização é válida?

Obrigada.

Resposta:

Apenas a sonorização – ou  lenição1 – é válida.

Na evolução do latim para o sistema galego-português e outros sistemas da România Ocidental, ocorreu regularmente o vozeamento das consoantes  oclusivas surdas intervocálicas surdas -C-, -P- e -T- : PACARE > pagar; SAPERE > saber; METU- > medo.

Observe-se que a sonorização se insere no fenómeno mais vasto da assimilação, pois o traço vozeado do contexto vocálico é transmitido à consoante intervocálica.

Sendo assim, à descrição do caso de TOTU-> todo, dá-se prioridade ao processo mais geral da sonorização, que ocorre em palavras em que não há contexto para a dissimilação:

PRATU- > prado

CITU- > cedo

LATU- > lado.

Considerando os casos acima, aceita-se metodologicamente a prioridade da regra mais geral sobre o fenómeno menos regular. A transição TOTU- > todo enquadra-se, portanto, na sonorização, que é regular e tem âmbito genérico, e não entre os fenómenos de dissimilação, que ocorrem mais pontualmente, em função de cada palavra.

 

1 «Refere-se tradicionalmente como lenição (ou abrandamento) uma série de mudanças que afetaram as consoantes oclusivas intervocálicas [...]. O contexto intervocálico potencia o 'abrandamento' da consoante, que assimila traços das vogais, como o traço de vozeamento (nesse caso uma não vozeada) [...].» Maria Teresa Brocardo, Tópicos de História da Língua Portuguesa, Li...

Pergunta:

A família do meu pai, natural da região de Castelo Branco, empregava amiúde o termo "coginjas" (ou cojinjas, não sei) como termo carinhoso para crianças, por exemplo, "Andá cá, meu coginjas" ou "saíste-me cá um coginjas...". Nunca encontrei o termo escrito, nem em dicionários , nem em parte nenhuma. Gostava de saber o significado e, se possível, a origem. Obrigada.

Resposta:

Não foi aqui possível identificar registo igual ou semelhantes, uma vez que as fontes consultadas1 não registam a palavra em questão.

É possível que seja palavra expressiva, eventualmente formada com base no verbo cogiar ou cugiar, que significa «vigiar, espreitar, observar, procurar, revistar, bisbilhotar» (José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Sociedade da Língua Portuguesa/Edições Alfa, 1991).

Com um agradecimento à consulente pela partilha do uso em questão, a pergunta fica em aberto, de modo a convidar contributos completos e fundamentados.

 

1 Dicionário de Expressões Populares Portuguesas, Dom Quixote, 2000, de Guilherme Augusto Simões; Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Objectiva, 2001; Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, 2001; Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa; Dicionário de Caldas Aulete (versão digital); Dicionário Priberam; Infopédia .

Pergunta:

Existe em português, do ponto de vista gramatical, a designação «verbo composto»?

Na língua inglesa, chama-se compound verb ou complex predicate ao verbo que consiste em pelo menos duas palavras ou por uma palavra composta (combinação de dois nomes). Este tipo de verbos divide-se geralmente em quatro grupos:

(1) «prepositional verbs» [verbos preposicionados (?)] – verbo + preposição (os dois elementos não são geralmente passíveis de separação);

(2) «phrasal verbs» [verbos sintagmáticos (?)] – verbo + partícula (preposição ou advérbio, ou ambos, sendo os dois elementos passíveis de separação);

(3) «verbs with auxiliaries» [verbos com auxiliares (ser ou estar)] – ser/estar + verbo;

(4) «compound single-word verbs» [verbos constituídos por uma palavra composta (podendo esta estar separada por um hífen) – Ex. «daydream» (fantasiar) ou «sight-read» (ler de improviso).

Grato pela atenção.

Resposta:

Em português, existe a noção de tempo composto («tinha feito», «tem feito»), mas não a de verbo composto.

O português é uma língua românica, o que significa que apresenta diferenças importantes em relação aos padrões de formação de verbos do inglês ou de outras línguas do respetivo ramo linguístico – as línguas germânicas. Não há, portanto, em língua portuguesa verbos que se pareçam aos phrasal verbs, que têm algum parentesco com os verbos de partícula do alemão.

No entanto, o português pode formar verbos por prefixação (pré-datar) que sugerem alguma afinidade com os prepositional verbs.

Os tempos compostos do português («ter feito») e a associação de auxiliares modais («poder/dever/ter de fazer») correspondem às construções verbais com auxiliares do inglês.

Contudo, não existem compound-single word verbs, pois, na verdade, o que se consegue em português é fazer derivar um verbo de um composto nominal: curto-circuitar (de curto-circuito).

Quanto às traduções dos termos ingleses aplicáveis aos diferentes tipos de verbos, as expressões interrogadas pelo consulente são aceitáveis, mas há outras que podem depender um pouco do quadro teórico da descrição. o que exigiria um inventário que não é aqui possível realizar.

Note-se, por último, que na descrição do sistema verbal do português se fala em complexo verbal, e não em "verbo composto", sempre em referência a formas verbais constituídas por auxiliar + verbo principal: «tenho feito», «vai fazer», «tem de fazer» (cf. Complexo verbal in Dicionário Terminológico).

Pergunta:

Há pouco tempo li alguns excertos do Regulamento para a policia e exploração dos caminhos de ferro... (Lisboa, 1868).

Aqui é utilizada a palavra trem e existe o chefe de trem. Mas no mesmo manual, que estava distribuído a todos os trabalhadores ferroviários, também aparece a palavra comboio, aparentemente com um significado ligeiramente diferente. Portanto houve um período em que se utilizou em Portugal a palavra trem.

Por exemplo, aparecem os dois termos nesta frase:

«Na testa do trem, e a seguir ao tender, irão tantos wagons que não transportem passageiros quantas as locomotivas que rebocarem o comboio […]; as carruagens e wagons que entrarem na composição de um trem de passageiros serão ligados de maneira que as almofadas de choque estejam em contacto.»

Como estudiosos da língua portuguesa saberiam indicar a diferença(s) que neste período era atribuída à definição de trem e comboio em Portugal?

Obrigado.

Resposta:

Confirma-se que, em Portugal, em meados do século XIX, comboio e trem eram sinónimos concorrentes.

No Regulamento para a policia e exploração dos Caminhos de Ferro a que se refere o decreto de 11 de Abril de 1868 (Lisboa, Typographia do Futuro, 1868), lê-se por exemplo (mantém-se a grafia original):

«Art. 21.º É prohibido ligar a um comboio mais de duas locomotivas accesas. Quando duas locomotivas rebocarem um trem será a marcha regulada pelo machinista da frente.

Na testa do trem, e em seguida ao tender, irão tantos wagons que não transportem passageiros quantas as locomotivas que rebocarem o comboio. Excepruam-se os casos em que a addição da segunda machina é necessaria no transito por motivo de atrazo, accidente, ou para a subida de uma rampa.» (p. 15)

Nesta passagem, comboio e trem parecem alternar numa estratégia de coesão lexical: ocorre trem para não repetir comboio, e vice-versa.

Nos textos portugueses do séc. XIX, identificam-se algumas ocorrências de trem como sinónimo de comboio, mas sempre minoritárias. Figuram, por exemplo, na obra de Eça de Queirós (1845-1900), mas não é de excluir que elas se devam ao gosto deste autor pelos galicismos:

(1) «e por ele soubemos, enquanto carimbava apressadamente os bilhetes, que o trem, muito atrasado, talvez não alcançasse em Medina o comboio de Salaman» (Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires, in Corpus do Português).

É, no entanto, curioso notar que no