Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na frase «o João zangou-se com o Ricardo», que subclasse de verbo temos? Transitivo indireto?

Muito obrigada.

Resposta:

No quadro de descrição gramatical que o Dicionário Terminológico pressupõe, o verbo zangar-se é transitivo indireto, porque é um «verbo principal que selecciona um sujeito e um complemento indirecto ou oblíquo» – ou seja, no caso, o verbo seleciona um complemento oblíquo introduzido pela preposição com.

Se a preocupação vem do facto de zangar-se ter conjugação pronominal reflexa, deve ter-se em conta que o -se é o que se chama um pronome inerente, isto é, não é um verdadeiro reflexo, uma vez que não pode ser reforçado pela expressão enfática «a si próprio» (o asterisco marca agramaticalidade):

1 – *«O João zangou-se a si próprio.»

Pergunta:

Tenho certa crença nas "convulsões" de que fala Ricardo Araújo Pereira:

«Recepção escreve-se com p atrás do ç. É assim porque o p provoca uma convulsão no e – sem lhe tocar. E eu tenho alguma afeição por quem consegue fazer isso.

Ler mais aqui.

Não preciso de o dizer [...] [e] não vos pretendo, portanto, maçar mais nesse âmbito, pelo que me refiro agora ao caso do verbo poder.

a) pod<e

b) pud<e

Ora, terá o u esse venerável poder de provocar uma dessas «convulsões sem contacto» no e próximo? Para esta palavra, não nos custa listar mais um parzinho idêntico: «poder/puder»... Mas haverá fundamento linguístico para esta sugestão? E noutras palavras, há traço do fenómeno?

Agradecido.

Resposta:

O contraste entre pude e pode não é da mesma ordem que o existente entre recepção e receção.

Sobre o caso de recepção/receção, há respostas anteriores.

Sobre o contraste entre formas da flexão do verbo poder, diga-se que a abertura do timbre da vogal temática e, do tema do pretérito perfeito, é uma característica dos verbos irregulares da 2.ª conjugação (e de estar e dar, da 1.ª conjugação). Trata-se de uma particularidade bastante antiga, porque ocorre também em galego, com o qual o português tem uma história comum até ao século XIV. Justifica-se, pois, transcrever sobre este assunto o que diz Manuel Ferreiro, em Gramática Histórica Galega (Edicións Laiovento, 1996, 310):

«[...] [A]ctualmente os paradigmas verbais apresentan na VT [vogal temática] dos tempos do Pretérito a oposición [é] nos verbos regulares, fronte a [έ] nos irregulares. A razón residirá na nivelación da VT nos verbos regulares a partir de formas maioritarias con [é] dos tempos do tema de presente, fronte aos verbos irregulares con pretérito forte, en que se mantivo a diferenza fonética na VT polo afastamento formal entre o tema de presente e de pretérito.»

É certo que, pelo menos, no português de Portugal, a vogal do radical de certas formas do presente e do pretérito perfeito do verbo poder (aquelas em que essa vogal não recebe acento tónico) é hoje foneticamente a mesma (não parece sê-lo fonologicamente). Confronte-se, por exemplo, podemos e pudemos, cujas primeiras sílabas são homófonas, tendo ambas [u]. Mas não se deve pensar que, nestes casos, os gr...

Pergunta:

Há alguns dias, ao encontrar a palavra régie escrita, pareceu-me que o acento gráfico estava a mais, uma vez que, habitualmente, ouvimos a palavra tendo -gie como sílaba tónica. Verifiquei que a forma com acento aparece nos dicionários que consultei. Por que razão isto acontece? Pronunciamos mal a palavra? É por ser uma palavra francesa? Se sim, não deveria aparecer sempre em itálico?

Resposta:

A palavra régie – geralmente usada no sentido de «cabina ou local para controlo técnico de uma emissão de televisão ou rádio ou de um espetáculo» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa) – é francesa e mantém a grafia dessa origem. Como é típico dos vocábulos franceses, é uma palavra aguda, ou seja, com acento tónico (fonético) na última sílaba, soando como "regi". Mas note-se que, em francês, o acento gráfico agudo não marca intensidade (como, em português), mas, sim, timbre (fechado) da vogal. Sendo assim, a palavra deveria aparecer em itálico ou entre aspas, a menos que se opte por a adaptar ao português, criando a forma "regi", não atestada.

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem acerca da classificação da segunda oração que ocorre na frase: «A mortalidade já atingiu níveis próximos do zero, pelo que ninguém espera uma nova redução até ao final do século.» O seu sentido parece estar de acordo com a natureza das orações coordenadas conclusivas (introduzidas pela locução «por isso»), no entanto, a relação de causa-consequência que estabelece com a oração anterior poderá aproximá-la das orações subordinadas adverbiais consecutivas. Uma vez que o Dicionário Terminológico não esclarece esta situação, será que me poderão apresentar outros argumentos inequívocos?

Antecipadamente, agradeço a vossa atenção.

Resposta:

Não tenho os argumentos inequívocos que a consulente pretende. À locução «pelo que» pode efetivamente ser atribuído um valor conclusivo, conforme já foi referido numa resposta anterior. No entanto, outros podem também ser-lhe atribuídos. Com efeito, apesar do seu significado conclusivo, a estrutura em questão é também suscetível de ser encarada como uma oração adjetiva relativa apositiva, com a função de modificador frásico.*

* Agradeço a  Rita Veloso, colaboradora da Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian e autora do capítulo aí dedicado à subordinação relativa (págs. 2061-2133), o seguinte esclarecimento (comunicação pessoal): «A frase em questão – «A mortalidade já atingiu níveis próximos do zero, pelo que ninguém espera uma nova redução até ao final do século» – é, efetivamente, uma oração relativa adjetiva. O seu antecedente é a oração principal e, quando temos um antecedente frásico, a relativa é sempre apositiva (ou explicativa). O nexo semântico é, realmente, conclusivo, mas os mesmos nexos semânticos podem ser estabelecidos através de diferentes nexos sintáticos. Se seguíssemos a classificação feita nas Áreas Críticas da Língua Portuguesa (João Peres e Telmo Móia, 1995, Editorial Caminho), diríamos que é uma oração relativa de frase, apositiva.»

Pergunta:

O habitante ou natural de Alvor (Algarve) é um "alvoreiro", ou é um "alvorense"?

Resposta:

O gentílico usado no registo formal é alvorense, que José Pedro Machado regista no seu Grande Vocabulário da Língua Portuguesa. No entanto, nos registos informais, de caráter popular, também se usa alvoreiro, pelo que podemos apreciar em certas páginas da Internet.