Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Venho por meio deste tentar sanar uma dúvida quanto à melhor forma de grafar as variantes sassânida e árabe do precursor do latim moderno, o chaturanga indiano. Eles são respectivamente o chatrang e o shatranj. Segundo as parcas fontes que encontrei, nenhuma delas em português (Hage, Louis. Encyclopédie maronite, Volume 1: Universidade Santo Espírito, 1992 p. 165; Ivkov, Borislav. Alfil Malo: Editorial Paidotribo, 2002 p. 207), o primeiro poderia ser grafado "chatrange", embora me tenham sinalizado recentemente que talvez no português desse algo como "chatrangue" ou coisa parecida. Do segundo, eu achei uma fonte italiana (Pacioli, Luca. Gli scacchi di Luca Pacioli: evoluzione rinascimentale di un gioco matematico: Aboca museum, 2007 p. 133), segundo a qual apenas se usa shatranji, embora em itálico, o que ainda leva a mais dúvidas que o primeiro, ainda mais quando consideramos que no português, via de regra, sh fica ch e/ou x (ex.: paxá).

Resposta:

Não tenho conhecimento de as palavras em causa terem chegado a ser adaptadas à fonética, à morfologia e à ortografia do português. Como se trata de palavras de uso raro, podemos sempre manter os termos usados internacionalmente, desde que os assinalemos em itálico ou entre aspas: shantranj e chantrang. No entanto, arrisco-me a propor que a forma árabe corresponda a xatranje, e a persa, a chatrangue, considerando os seguintes critérios:

– Em relação a xatranjeshantranj na transliteração para inglês, que se tornou também a forma internacional em alfabeto latino, e, em árabe شطرنج –, começa esta palavra por uma consoante fricativa pré-palatal surda, segmento que o árabe representa pela letra ش (shim ou xime). Geralmente, nos arabismos do português, tal letra corresponde a x1, e não a ch, já desde a Idade Média. É, portanto, mais coerente com a tradição portuguesa escrever xatranje, com x, do que adotar uma forma com ch, ou seja, "chatranj". Na restante sequência de letras em português, é ainda de assinalar o uso de j, e não de g, antes de e: apesar de, em muitos arabismos, a consoante fricativa pré-palatal sonora que se representa pela letra árabe ج (jime) aparecer depois grafada com g antes de e ou i (algeroz, algibeira), não se afigura ilegítima a transliteração portuguesa com j, de modo a assinalar que tal segmento não tem relação com a pré-palatal que evoluiu do G latino (por exemplo, gente ou agir).

Pergunta:

É correto escrever-se «o Samouco» (localidade)? Exemplo: «Vivo no Samouco»? «Vivo em Samouco»? Ou ambas as formas são corretas?

Resposta:

O uso tradicional do topónimo Samouco inclui o artigo definido («o Samouco») e, portanto, deve dizer-se «vivo no Samouco». Este topónimo parece ter origem no substantivo comum samouco (cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa), designação de uma planta (Myrica faya) ou de «crosta formada pela pedra depois de separar-se da pedreira» (Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Pode dizer-se «entregar um discurso» em vez de «fazer um discurso»?

Penso que «entregar um discurso» é a tradução directa de «deliver a speech» e que estará incorrecta, mas agradecia o vosso comentário.

Resposta:

Em português, a expressão tradicional é efetivamente «fazer um discurso». «Entregar um discurso» constitui, como bem observa a consulente, um anglicismo dispensável – um decalque de «to deliver a speech», ou seja, «discursar», «fazer um discurso» – e até forçado, porque o verbo entregar não costuma fazer referência à atividade linguística.

Pergunta:

Gostaria de saber se a expressão «cumprir com as tarefas» está correta. Considero que o uso a preposição aqui não faz sentido, mas tenho ouvido frequentemente esta expressão.

Agradeço desde já o esclarecimento.

Resposta:

É correto usar o verbo cumprir com a preposição com.

Este uso está registado no Novo Dicionário Lello Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa (ver expressões «cumprir com», «cumprir com a obrigação», «cumprir com os deveres»). Também no Dicionário de Verbos e Regimes (6.ª edição, 1947) de Francisco Fernandes se observa o seguinte: «Tanto é correto dizer-se "cumprir com" quanto dizer-se "cumprir 0": "Cumpri com o dever", ou "cumpri o dever" [...].»

Pergunta:

Prezados companheiros do Ciberdúvidas, estou com uma dúvida no que se refere ao emprego da preposição/locução prepositiva na seguinte frase:

«SP precisa reduzir consumo de água no curto prazo, diz secretário.»

Ou

«SP precisa reduzir consumo de água a curto prazo, diz secretário.»

Correto seria «no curto prazo» ou «a curto prazo», e por quê? Esta última locução, «a curto prazo», é usada e indicada para uso pelo gramático Celso Pedro Luft em sua obra Grande Manual de Ortografia Globo.

Obrigado.

Resposta:

Em Portugal, usamos «a curto prazo», e não «no curto prazo». Já no português do Brasil, as fontes a que tenho acesso – Dicionário Houaiss e Dicionário UNESP do Português Contemporâneo – registam a locução só sob a forma «a curto/longo prazo», confirmando assim a informação recolhida pelo consulente. No entanto, verificamos que os media brasileiros (ou «a mídia brasileira») preferem «no curto prazo», o que me leva a crer que esta forma se impôs pelo uso e não pode ser considerada incorreta.* Mesmo assim, recomendo «a curto prazo», por ter mais tradição.

*Uma pesquisa feita no Corpus do Português, de Mark Davies e Michael Ferreira, permite confirmar que a variante «no curto prazo» se usa maioritariamente em textos brasileiros (dados recolhidos pelo consultor Luciano Eduardo de Oliveira): 44 ocorrências, contra apenas 4 de textos do português de Portugal. Há ainda outra variante, «em curto prazo» (11 ocorrências), apenas associada a textos do português do Brasil. A forma que aqui se recomenda, «a curto prazo», figura tanto em textos brasileiros como em textos de Portugal .