Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho um dúvida em relação à fonética de palavras como ponte e Barcelona. Será "pônte" ou "pónte"? "Barcelôna" ou "Barcelóna"?

Resposta:

No português de Portugal, as sequências gráficas on- (onda, ponte) e om- (bomba), que ocorrem antes de consoante, correspondem sempre a um o nasal fechado (uma vogal nasal média arredondada, de acordo com o Dicionário Terminológico). No entanto, sabe-se que nos dialetos portugueses setentrionais essas vogais podem ser pronunciadas com o timbre mais aberto e até como vogais orais seguidas de um segmento consonântico, o que permite que ponte possa soar como "pónte", ou com o nasal aberto, ou com o oral aberto seguido de segmento consonântico nasal.1 Quanto a Barcelona, também o padrão é com o oral fechado, mas não é de excluir que, dialetalmente, tal vogal tenha o timbre mais aberto.

1 Conforme observam Maria João Freitas, Celeste Rodrigues, Teresa Costa e Adelina Castelo, em Os Sons Que Estão dentro das Palavras (Lisboa, Edições Colibri/Associação de Professores de Português, 2012, págs. 164/165), «[a]lgumas vogais nasais dos dialetos setentrionais apresentam-se mais abertas do que as correspondentes do dialeto-padrão. Isso não acontece com as vogais altas [ĩ] e [ũ], que têm um grau de fechamento estável na língua. Porém a vogal [ɐ̃] do padrão, embora exista nos dialetos setentrionais, nesses dialetos costuma ocorrer em variação com duas outras formas: i) como vogal baixa recuada nasal [ã], ii) como vogal oral seguida por uma coda (consonântica) nasal: antiga [an.tí.gɐ], campo [kám.pu], canga [káŋ.gɐ], ou seja, com uma coda com o ponto de articulação da consoante segui...

Pergunta:

«Lamentavelmente somente depois da sociedade comprovar a necessidade de mudanças estruturais e cobrar mudanças, é que as transformações começaram a acontecer.»

Está correto o uso da vírgula no período acima?

Obrigado.

Resposta:

Aconselho a seguinte pontuação (com a não contração da preposição de com o artigo a, como é obrigatório quando estas palavras são antecedidas de um verbo no infinitivo):

«Lamentavelmente, somente depois de a sociedade comprovar a necessidade de mudanças estruturais e cobrar mudanças é que as transformações começaram a acontecer.»

A expressão «é que» não costuma ser antecedida de vírgula, tal como não tem vírgula a construção enfática equivalente:

«Lamentavelmente, foi somente depois de a sociedade comprovar a necessidade de mudanças estruturais e cobrar mudanças que as transformações começaram a acontecer.»

Pergunta:

Em primeiro lugar, meus cumprimentos pelo excelente trabalho! Sou professor de Física, e também na minha área prezo pelo bom uso do vernáculo.

Indago hoje sobre uma expressão recorrente em problemas de Física e de Matemática. Suponha que queiramos nos referir a uma superfície inclinada, que forme com a horizontal um ângulo de, por exemplo, 30 graus. Estaria correto dizer que ela é «inclinada de 30 graus com a horizontal»?

Apesar de prevalecente a construção em nossos livros ditos didáticos, julgo-a imprópria: primeiro, porque acredito que «inclinado» rege complemento direto («inclinado 30 graus», e não «de 30 graus»); segundo, porque entendo que uma coisa pode «formar um ângulo com outra», mas nunca «ser inclinada com outra». Correto, a meu ver, seria dizer que a superfície é «inclinada 30 graus da (i.e., a partir da) horizontal».

Gostaria de saber a opinião de vocês a respeito do tema.

Muito obrigado!

Resposta:

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as palavras de apreço do consulente.

A expressão «inclinado de 30 graus» evoca outras construções controversas, como «aumentar em» e «aumentar de».

Recomenda-se por isso o uso não preposicionado do complemento que marca a medida, conforme o exemplo:

1 – «...inclinada 30 graus em relação à horizontal.»

Outro exemplo:

2 – «O eixo do teu balão está agora inclinado 23 e 30 graus/minutos em relação à vertical.»

Note-se, de qualquer modo, que, em páginas do Brasil, a construção «inclinado/a de... com...» é muito frequente, o que pode sugerir que a expressão já está consagrada pelo uso no âmbito da norma-padrão brasileira. Em Portugal – e provavelmente noutros países de língua oficial portuguesa, como Cabo Verde, Angola ou Moçambique –, parece preferir-se a construção indicada em 1 e 2.

Pergunta:

Na frase «Ele hospedou-o em sua casa», a expressão «em sua casa» é um complemento oblíquo, ou um modificador?

Antecipadamente grata pela atenção dispensada.

Resposta:

Os dicionários gerais consultados (Dicionário Houaiss e Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses da Texto Editora) dão a indicação de o verbo hospedar poder ser transitivo direto («alguém/alguma coisa hospeda alguém/alguma coisa», no sentido genérico de «receber»), sem explicitarem a eventualidade de o verbo ter ainda um complemento oblíquo. Nesta perspetiva, na frase «ele hospedou-o em sua casa», o constituinte «em sua casa» é um modificador do grupo verbal. Quando o verbo é usado com o pronome -se (hospedar-se), os dicionários consultados classificam-no como verbo pronominal, embora possam ser omissos quer a respeito da natureza do pronome -se (reflexo, ou inerente?) quer quanto ao estatuto da expressão locativa associada a este uso; refira-se que no Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses (Lisboa, Texto Editora, 2007), regista-se este uso pronominal, sem complementos. Cabe observar, no entanto, que uma frase como «ele hospedou-se» se afigura incompleta, pelo que, considerando, a título de exemplo, a sequência «ele hospedou-se em sua casa», deve ser atribuída a função de complemento oblíquo à expressão «em sua casa». Relativamente à natureza do pronome -se em hospedar-se, parece-me legítimo interpretá-lo como pronome inerente, sem função sintática específica.

A assimetria entre «hospedar alguém» e «hospedar-se em...» é também descrita por Francisco Fernandes, no Dicionário de Verbos e Regimes (6.ª edição, 1947): «Transitivo – Receber por hóspede; dar hospedagem a: "On...

Pergunta:

Teriam a amabilidade de me desvelar o sentido da expressão «cavar pés-de-burro»?

Grato pela atenção dispensada.

Resposta:

A expressão «cavar pés-de-burro» significa o mesmo que «cavar batatas», usada nas aceções de «não ter onde ganhar a vida» e «mandar alguém embora» (Guilherme Augusto Simões, Dicionário de Expressões Populares Portuguesas). «Pé-de-burro» é, em botânica, uma «planta monocotiledónea, bolbosa, da família das Iridáceas, espontânea no Centro e no Sul de Portugal» (Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora).