Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Deve-se dizer «ficou atónito perante a sua recusa em jantar», ou «ficou atónito perante a sua recusa de jantar»?

Resposta:

Os dois usos estão corretos, e é também possível dizer ou escrever «a sua recusa a jantar». Ou seja, o substantivo pode ser seguido das preposições em, de e a antes de substantivo ou de verbo no infinitivo.

O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, apresenta abonações do uso do substantivo recusa com as preposições em e de:

1 – «A recusa em apresentar desculpas valeu-lhe a perda de um amigo.»

2 – «O cliente pode fazer a recusa de qualquer produto danificado.»

O Dicionário UNESP do Português Contemporâneo também abona o uso de a:

2 – «Não esperava a recusa ao seu pedido de casamento.»

Ver ainda Francisco Fernandes, Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos, onde se confirmam estas regências.

Pergunta:

Se o verbo sair vem do latim salire, donde vem que se escrevesse sahir, com h, e não com l, salir?

Grato.

Resposta:

O português e o galego perderam o -L- intervocálico do latim: TELA- > tea (galego), teia (português). Assim se explica que de *SALIRE tenha evoluído sair, sem l. Quanto à ortografia, até ao Formulário Ortográfico de 1911, usava-se o h para indicar um hiato, ou seja, para indicar uma sequência de vogais que não formavam ditongo. Daí sahir, com h, de modo a assinalar que a pronúncia era "sa-ir", sem ditongo. Mais tarde, suprimiu-se esse h, porque todas as palavras que exibem a sequência "ai" seguida de "r" final são pronunciadas com hiato (cf. cair, trair, esvair).

Pergunta:

Indago aos sapientíssimos consultores do Ciberdúvidas se a expressão «prazer dos sentidos» é sinônima da expressão «prazer sexual».

Muito obrigado.

Resposta:

A expressão «prazer dos sentidos» não é propriamente sinónima de «prazer sexual», mas é suscetível de ser utilizada como eufemismo para evitar a referência direta à vida sexual, assunto que até há algumas décadas e mesmo ainda hoje era ou é mais ou menos censurado. Mesmo assim, diga-se que a expressão «prazer dos sentidos» pode abranger outras experiências de prazer como as que proporcionam o gosto, o olfato ou a visão. Assinale-se também que o Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho, regista uma expressão bastante aproximada – «entregar-se a prazeres» –, que parece ter forte conotação sexual, embora não possa ser entendida assim exclusivamente: «vivia uma vida de dissipação, entregando-se a prazeres que eram por vezes infames (abandonando-se a, deixando-se arrastar por)». Ou seja, tendo em conta que, historicamente, a sexualidade era uma esfera de referência sobre a qual recaíam numerosas interdições e tabus, havia (e continua a haver) toda uma forma oblíqua de lhe fazer alusão, sem a mencionar diretamente. Esta estratégia discursiva faz com que tal conotação acabe, por vezes, associada a outras significações que tornam difusa a referência de caráter sexual.

Pergunta:

Gostei muito do site. Conheci-o há pouco tempo e passarei a freqüentá-lo mais vezes.

Minha dúvida é sobre o Formulário Ortográfico de 1911.

Quais eram as regras ortográficas anteriores a esse formulário?

Resposta:

Antes do Formulário Ortográfico de 1911, que marcou a primeira reforma profunda da ortografia da língua portuguesa, não havia propriamente um corpo de regras que fosse adotado por todos. Seguia-se uma tradição não sistematizada, fortemente etimológica (daí o ph, o th, o ch com valor de [k]) e até pseudoetimológica. Verificavam-se, por isso, grandes divergências entre formas de palavras, justamente porque a ortografia não estava totalmente fixada num documento acessível ao público. Deve, contudo, registar-se que, no século XIX, se procurou reduzir ao mínimo a arbitrariedade desta escrita etimológica com a publicação, em 1866, de um vocabulário ortográfico, o primeiro da história ortográfica do português (cf. Artur Anselmo, Vocabulários da Língua Portuguesa Editados em Portugal (1866-1970), comunicação apresentada à Classe de Letras da Academia das Ciências de Lisboa em 9/07/2009). Sobre este assunto, aconselho também a leitura de uma obra publicada em 1987, por alturas do reacender do debate sobre a ortografia: Ivo Castro e outros, A Demanda da Ortografia Portuguesa, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1987.

N.E. – Desde cedo, os jornais da época noticiaram e comentaram esta primeira iniciativa de normalização e simplificação da escrita da língua portuguesa. Por aí pode acompanhar-se a preparação de impressores e tipógrafos para receber a reforma em vigor desde 1911; por aí perpassa o terçar de armas a favor d...

Pergunta:

«Era um jogo arriscado e perigoso.»

Há redundância nessa frase?

Obrigado.

Resposta:

Não me parece haver uma resposta categórica à pergunta, porque muito depende do partido estilístico que se pretenda tirar da coordenação de sinónimos e da redundância daí resultante.

A expressão contém efetivamente certa redundância, por envolver dois sinónimos, perigoso e arriscado, facto que poderá constituir razão suficiente para a rejeitar. Observe-se, porém, que os substantivos perigo e risco, pressupostos mais ou menos diretamente pela formação destes adjetivos, estabelecem entre si certo contraste, como propõe o Dicionário dos Sinónimos Poético e de Epítetos da Língua Portuguesa, de J. I. Roquete e José da Fonseca:

«O perigo refere-se a um mal mais imediato que o risco. Aquele aplica-se sempre à contingência de grande momento; este costuma aplicar-se a coisa de menor consequência. Está em perigo de perder a vida o soldado que se acha em frente de uma bateria inimiga. Corre risco de cair doente o que passa sem precaução do calor ao frio. O primeiro refere-se a um mal mais iminente e mais próximo que o segundo. – Quem joga na lotaria corre risco de perder seu dinheiro; e não se diria está em perigo, etc., o que suporia um mal muito maior que o que corresponde àquela ideia.

Um valente que despreza os riscos costuma arrepender-se de sua temeridade à vista do perigo

Nesta perspetiva, é, pois, legítimo considerar que, em «um jogo arriscado e perigoso», «perigoso» não é simples reiteração do significado de «arriscado» e, portanto, a expressão não é redundante ou pleonástica. Além disso, é frequente uma sequência constituída por dois sinónimos coordenados servir para enfatizar uma ideia, ch...