Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Seria possível explicar a origem da expressão «já cá canta»?

Desde já obrigada pela atenção.

Resposta:

Não conheço fontes que expliquem a origem factual da expressão, mas o que consigo apurar é que cantar ocorre em expressões idiomáticas registadas por dicionários do século XIX, como acontece no Grande Diccionario Portuguez ou Thesouro da Lingua Portugueza, de Domingos Vieira, o qual acolhe a locução «cantar dinheiro na algibeira», no sentido de «ter, possuir dinheiro». É plausível que «já cá canta» tenha significado originalmente «já cá canta o dinheiro», ou seja, «já cá tenho o dinheiro»; daqui, a expressão terá passado a significar também «consegui o queria», «já ganhei».

Pergunta:

Porque é que se diz «ir ao toilette» (no masc.) quando toilette é uma palavra feminina?

Obrigada.

Resposta:

No sentido de «lavabo» ou «quarto de banho», o galicismo toilette (ou, em forma já adaptada ao português, toalete), que é geralmente usado no género feminino, ocorre no masculino, provavelmente porque se trata da abreviação da expressão «cabinet de toilette», ou seja, mais literalmente, «quarto de vestir», mas numa tradução mais livre «quarto de banho», expressão francesa cujo núcleo – cabinet – é do género masculino. Esta hipótese é sugerida pelo comentário que Vasco Botelho de Amaral dedica ao vocábulo toilette, no seu Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (1958):

«Toilette. É este um dos mais corriqueiros estrangeirismos. O significado inicial de toilette é: toalhinha, toalha de renda. Equivale também a: toucador, mesa-toucador; quarto de vestir (cabinet de toilette); vestido, trajo, vestimenta, modo de trajar, vestuário, vestes, roupagem, etc.; trajo esmerado; alinho; adornos, adereços, enfeites. [...].»

Não é de excluir a possibilidade de toilette dever o género masculino à tradução portuguesa que pressupõe «quarto de banho».

Pergunta:

No espanhol-padrão, as oclusivas vozeadas [b], [d] e [ɡ] são realizadas como aproximantes, isto é [β], [ð] e [ɣ], em posição intervocálica ou antes de certas consonantes. O mesmo processo de debilitamento já foi observado no português europeu e descrito inúmeras vezes por muitos fonetistas, no entanto, eles parecem não concordar no aspecto sociolinguístico deste fenómeno. Enquanto alguns autores sustentam que este debilitamento pertence, sem dúvida, ao português europeu-padrão, outros registam-no como uma pronúncia completamente regional. E alguns não chegam sequer a mencioná-lo. Gostaria de conhecer, por favor, a vossa opinião sobre este assunto, como falantes nativos e bons conhecedores da língua. Seria conveniente adotá-lo, ou não?

Muito obrigado.

Resposta:

Efetivamente verificam-se as oscilações que refere na descrição das consoantes em causa. O facto de sermos falantes nativos pouco pode ajudar, se não tivermos algum treino na identificação desses segmentos; e geralmente os falantes aparentam não se aperceber da referida diferença, ou seja, ao contrário de certo tipo de variação (por exemplo, o contraste entre [b] e [v] ou a sua neutralização), a articulação das oclusivas vozeadas como aproximantes (também chamadas fricativas) não parece ter tanta importância para a definição de contrastes regionais. Mesmo assim, na descrição da pronúncia-padrão, tem-se salientado o [ð] intervocálico em palavras como cada e dado.

Pergunta:

Sou portuguesa, mas vivo atualmente no Brasil. Gosto de ouvir e comparar as especificidades regionais da língua mas, por vezes, surgem-me algumas dúvidas quanto à "gramaticalidade" de algumas construções frásicas. Uma delas inclui o uso que os brasileiros fazer do pronome interrogativo qual – ou que nós não fazemos, dependendo do ponto de vista. :)

Em Portugal (pelo menos em Lisboa, que é de onde eu sou) não é comum usar o pronome interrogativo qual a preceder imediatamente um substantivo. Normalmente usamos o que: «Em que casa é que ela vive?» (E não «Em qual casa...?»); «Para que dia ficou marcada a reunião?» (e não «Para qual dia...»); «Com que roupa é que vais?» (e não «Com qual roupa...?»), etc.

Usamos normalmente o qual se ele surge como pergunta inteira («– Gosto daquele relógio»; «– De qual?») ou se vem diretamente antes de um verbo (incluindo o famoso auxiliar de perguntas «é que»): «De qual é que gostas mais?»; «De quais gostas mais?»

No entanto, ouço com bastante regularidade os brasileiros utilizarem «de/em/para qual + substantivo». Um dos exemplos mais comuns é com os dias: «Em qual dia da semana você nasceu?» (Enquanto um lisboeta perguntaria: «Em que dia da semana...?»)

A minha pergunta é (sem pôr em questão a legitimidade da prática popular dos brasileiros em fazer uso dessa construção): do ponto de vista puramente gramatical, é possível dizer que está correto perguntar «qual + substantivo» («Em qual dia?»), ou soa-me mal simplesmente porque eu não estou habituada?

Desde já agradeço antecipadamente a resposta a esta dúvida. E agradeço pelo vosso excelente trabalho em geral. Um verdadeiro serviço de utilidade pública!

Apesar de portugueses e brasileiros, entre outros povos, falarem o mesmo idioma, não podemos esperar que a gramática funcione exatamente da mesma maneira nas diferentes variedades da língua portuguesa.

O português de Portugal e o português do Brasil são duas das variedades que têm sido abordadas frequentemente em obras de descrição e codificação. Entre as várias diferenças, encontra-se justamente a focada pela consulente: no Brasil, não sendo impossível empregar que como determinante interrogativo, é frequente empregar qual com essa função (ou, para ser mais prático, sem ser seguido da preposição de). Esta possibilidade é gramatical e está atestada tanto em gramáticas como em dicionários produzidos no Brasil. Por exemplo, é referida por Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa (Editora Lucerna, 2002, p. 170):

«Qual e também que, indicadores de seleção, normalmente são pronomes adjetivos:
Em qual livraria compraremos o presente?
Em que livraria compraremos o presente?»

O Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (s. v. qual) também dá conta do uso de qual como determinante interrogativo:

«QUAL. Pron [Interrogativo] 1 Introduzindo uma pergunta de caráter seletivo, refere-se a coisa ou pessoa dentre outras: Qual blusa você prefere? Nem sabia qual filho nascera primeiro. Diga qual bebê é o mais lindo. Em qual estante está o livro que você pediu? [...]»

Este uso não se verifica em Portugal, pelo menos, em frases interrogativas que tenham o predicado realizado; nestas frases ocorre sistematicamente que antes de substantivo («em que livraria compraremos...?»; «Que blusa prefe...

Pergunta:

Não consigo perceber clara e inequivocamente a distinção entre a modalidade epistémica com valor de probabilidade e a modalidade epistémica com valor de possibilidade. Poderiam fornecer alguns exemplos? No Dicionário Terminológico não se faz esta distinção, mas as gramáticas fazem-na, e surgem questões em exame nacional que pressupõem que os alunos consigam perceber as diferenças.

Obrigada.

Resposta:

1. Há, de facto, em Portugal, gramáticas escolares que aplicam o Dicionário Terminológico (DT) e distinguem valor de probabilidade e valor de possibilidade.

2. Esta distinção remonta a uma versão anterior do DT, a Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário (TLEBS). Quem tiver ainda acesso ao respetivo CD-Rom, publicado em 2004, poderá encontrar esses dois termos usados e exemplificados na entrada "modalidade epistémica", que a seguir se transcreve:

«Os valores epistémicos exprimem a atitude do locutor relativamente à verdade ou falsidade do conteúdo proposicional do seu enunciado. Essa atitude baseia-se no grau de conhecimento que está na origem do juízo emitido. De acordo com esse grau de conhecimento, propõe-se a classificação dos valores epistémicos em valores de certeza (ex. 1), valores de probabilidade (ex. 2) e valores de possibilidade (ex. 3).

Exemplos:

(1) O João chegou/não chegou ontem. (2) O João deve/não deve ter chegado ontem. (3) Pode ser que o João tenha/não tenha chegado ontem.»