Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No vilancete camoniano Descalça vai para a fonte, qual é a função sintática desempenhada por «de prata» e «d´ouro» nos versos «o testo nas mãos de prata» e «cabelos d´ouro o trançado»? Estou em dúvida entre complemento do nome e modificador restritivo. Qual a vossa opinião?

Obrigada.

Resposta:

Na perspetiva do Dicionário Terminológico, trata-se de modificadores restritivos do nome que são realizados por grupos preposicionais equivalentes a grupos adjetivais («muito brancas ou delicadas», «loiros»).

A Gramática do Português (2013), da Fundação Calouste Gulbenkian, não se afasta muito desta análise quando identifica (pp. 1066-1070) um tipo de sintagmas preposicionais reduzidos (isto é, sem artigo) a que chama «sintagmas preposicionais classificadores». Entre estes modificadores, contam-se os que se referem a matéria-rima («vestido de seda» e «lençol de algodão», idem, p. 1068) e que correspondem aos complementos circunstanciais de matéria da terminologia tradicional. No poema, é de salientar a dimensão metafórica destes modificadores, a qual lhes permite referirem matérias-primas (prata, ouro) suscetíveis de serem usadas na estatuária, operando-se a transfiguração da jovem retratada.

Pergunta:

Na frase «o céu está nublado/estrelado», os adjetivos são qualificativos, ou relacionais?

Obrigada.

Resposta:

São qualificativos os adjetivos apresentados, tendo em conta o Dicionário Terminológico.

Com efeito, como é típico dos adjetivos qualificativos, nublado pode ser usado em construções de grau («céu muito nublado»), e estrelado já contém em si uma noção de alto grau («repleto de estrelas»). Acresce que ambos os adjetivos são resultado da recategorização de particípios passados em adjetivos (são particípios adjetivais, conforme a classificação da Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian (pág. 1485). Este aspeto é importante para a identificação da subclasse de nublado e estrelado, como se assinala na gramática escolar Domínios – Gramática da Língua Portuguesa – 3.º ciclo e ensino secundário (Lisboa, Plátano Editora, 2011, p. 133), de Zacarias Santos Nascimento e Maria do Céu Lopes (sublinhado meu):

«A posição dos adjetivos qualificativos na frase é, habitualmente, pós-nominal [...]. Há, no entanto, adjetivos que podem aparecer à esquerda do nome: "Uma bela estátua!" [...] Esta é uma propriedade que distingue os adjetivos qualificativos dos adjetivos relacionais. Outros traços distintivos do adjetivo qualificativo[:] 1. Expressa propriedades não definidoras: A minha cadela é amarela [amarela não define a espécie a que pertence cadela]; 2. Pode apresentar prefixos negativos: impróprio, intolerante, descontínuo; 3. Pode provir de um particípio verbal: ou de um particípio passado – amado, constipado; ou de um particípio presente de verbos latinos – sorridente, reluzente; 4. É, em geral, graduável, podendo ter antónimos: alto/altíssimo; bom/mau

Pergunta:

Qual a origem do sobrenome (apelido – nome de família) Tigre? É portuguesa? Sabem em quais regiões do Brasil e Portugal ele é mais comum? E quando surgiram os primeiros registros de famílias de sobrenome Tigre em língua portuguesa?

Resposta:

Nas fontes de que dispomos, relativas a nomes próprios, não encontramos praticamente registos de Tigre como nome próprio. Apenas no Tratado das Alcunhas Alentejanas (Lisboa, Edições Colibri, 2003) se consigna Tigre como alcunha (apelido no Brasil) alusiva ao comportamento de alguém tido como pessoa de mau feitio. É natural que a alcunha tenha passado a apelido (no Brasil, sobrenome), mas a obra em referência não confirma essa hipótese nem dá elementos sobre a datação e a distribuição geográfica deste nome próprio.

Pergunta:

Teriam a gentileza de dizer-me quando o estrangeirismo rastafari foi aportuguesado?

Grato pela resposta de antemão.

Resposta:

Entre as obras consultadas, apenas o Dicionário Houaiss apresenta datação para a palavra em apreço, indicando o ano de 1955 sem identificar fonte. Quanto à grafia da palavra, tal como o Dicionário da Língua Portuguesa, da Infopédia, e o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, o Dicionário Houaiss escreve rastafári, adaptação de rastafari, que tem origem num nome próprio: «[do] antr[opónimo] ras, "cabeça, chefe", Tafari (Tafari Makonnen, 1892-1975), coroado imperador da Etiópia (1930-1974) sob o nome de Haïlé Selassié». O vocábulo tem várias aceções, conforme se regista no Dicionário Houaiss: como termo de religião, «seguidor do rastafarianismo» e «relativo a ou próprio dessa seita ou dos seus seguidores»; em relação à música, «músico ou adepto do reggae1»; em relação a maneiras de vestir ou apresentar-se, «diz-se do cabelo longo característico dos rastafáris, arranjado em mechas enroladas e separadas, às quais se aplica banha ou cera» e, no Brasil, «diz-se do cabelo dividido em mechas trançadas a partir da raiz, às vezes entremeadas de linhas ou contas coloridas».

Apesar da datação precoce que é proposta pelo Dicionário Houaiss para a entrada de rastáfari no português, é plausível que a palavra só se tenha tornado mais frequente no final dos anos 70 do século passado, quando a música reggae e o rastafarianismo eram moda.

1 Reggae: «

Pergunta:

Há regras ortográficas para saber se um o é aberto ou fechado? Por exemplo, se o o vai seguido de umas consoantes específicas, é aberto, ou fechado? Ou, pelo contrário, é preciso saber o caso particular de cada palavra?

Muito obrigado.

Resposta:

Só é possível saber se as vogais e e o são abertas ou fechadas, quando a palavra em que uma ou outra ocorrem tem acento gráfico. Exemplos:

(1) pôde, avô (o fechado); crónica*, avó (o aberto)

(2) (e fechado);  (e aberto)

Em palavras sem acento, geralmente paroxítonas, não há maneira gráfica de indicar essa diferença e temos de saber qual é a pronúncia da palavra:

(3) molho (= espanhol salsa) – o fechado vs. molho (= feixe) – o aberto

(4) meta (= 3.ª pessoa do singular do presente do conjuntivo de meter) – e fechado vs. meta (= objetivo) – e aberto

Geralmente, os dicionários assinalam estas diferenças com indicações suplementares sobre pronúncia (caso do Dicionário Houaiss) ou com transcrição fonética (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).

* No português de Portugal.