Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostava de saber o que representa a metáfora «os corpos que fogem do chão» que aparece na canção Viagens, de Pedro Abrunhosa. Ele é muito dado às pinceladas susceptíveis de muitas interpretações que ficam entregues à consciência de cada um.

Eis o contexto:

Viagens que se perdem no tempo

Viagens sem princípio nem fim

Beijos entregues ao vento

E amor em mares de cetim

Gestos que riscam o ar

E olhares que trazem solidão

Pedras e praias e o céu a bailar

E os corpos que fogem do chão

Resposta:

Suponho que a metáfora se associa a outra mais abrangente, a do amor como viagem, concebida como experiência sem limite. Por exemplo, as palavras mar, vento, ar e bailar definem um universo em que tudo parece flutuar ou levitar – ou seja, usando a metáfora de Abrunhosa, «fugir do chão». Note que é comum a expressão «sentir o chão fugir sob/debaixo os/dos pés», quando se pretende referir uma perda de equilíbrio (sublinhado meu):

(1) «Alberto empalideceu e ficou com tremulinas nos olhos, a sentir o chão fugir-lhe sob os pés» (Ferreira de Castro, A Selva, in Corpus do Português.

No caso do poema de Abrunhosa, inverte-se a situação, com efeito poético: é o corpo que foge do chão.

Pergunta:

Existem em português palavras correspondentes às inglesas stalking e cyberstalking, relativas à perseguição ou assédio de pessoas?

As palavras inglesas estão a ser usadas na comunicação social portuguesa, por exemplo, aqui.

Obrigado.

Resposta:

O termo inglês stalking é traduzível por «perseguição furtiva» (cf. stalk, «perseguir furtivamente» em The Oxford Portuguese Dictionary) ou, como propõe a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), por «assédio persistente». Observe-se, porém, que assédio tem sido muitas vezes a tradução de bullying, o que pode levar a alguma ambiguidade no uso da palavra portuguesa. Mesmo assim, se optarmos por acosso ou acossamento como termos equivalentes de bullying, poderemos restringir o emprego de assédio à referência de situações descritas como stalking em inglês.

Quanto a cyberstalking, ou seja, o «uso repetido de meios eletrónicos para assediar ou atemorizar alguém, por exemplo, com o envio de ameças por correio eletrónico» (cf. definição em inglês no Oxford English Dictionary), é legítimo transpor a estrutura da palavra inglesa e recorrer a um elemento equivalente a cyber-, o pseudoprefixo ciber-, de modo a formar ciberperseguição e ciberassédio.

É preciso assinalar que as palavras portuguesas aqui propostas não estão ainda nem claramente atestadas nem enraizadas em alusão às situações em causa. Valem em todo o caso como sugestões que pretendem minorar a atual dependência terminológica do português em relação ao inglês.

Pergunta:

No jornal Públicouma crónica de Miguel Esteves Cardoso começa assim:

«Ucrânia, tal como Portugal, não tem artigo definido. Assim como não se diz "o Portugal" ou "no Portugal" também não se diz "a Ucrânia" e "na Ucrânia".»

É isto verdade?

Resposta:

Parece-me que a afirmação de Miguel Esteves Cardoso não tem de ser tomada à letra e pode ser interpretada não como preceito gramatical, mas, sim, como efeito retórico, com a finalidade de salientar o tema do texto e sugerir que a situação de conflito na Ucrânia afeta tanto o autor como se fosse passada em Portugal. Por outras palavras, se Miguel Esteves Cardoso gosta muito de Portugal e o nome deste país se usa sem artigo definido, então também «Ucrânia» não usa artigo definido, porque se trata de um país a que também não é indiferente. Ou seja, o enunciador, ao querer manifestar solidariedade com os ucranianos, altera a gramática egocentricamente, em função dos seus afetos e emoções, que impõem a sua lei pela frase declarativa.

No entanto, não é de excluir que o autor em causa pretenda transpor para o português uma mudança verificada na associação tradicional do artigo definido the, «o(s), a(s)», a Ukraine, «Ucrânia» – «the Ukaine» (cf. "Ukraine or the Ukraine: Why do some country names have `the´?", artigo publicado no sítio da BBC News em 7/6/2012).1 O artigo definido inglês teria a finalidade de indicar que o nome próprio constituía apenas uma região geográfica sem estatuto político separado, com origem numa expressão do léxico comum; com efeito, Ukraine (como Ucrânia) é adaptação de Ukraina, nome de origem russa ou polaca que significa literalmente «fronteira» (de u, «em» e krai, «borda, margem»; cf. Online Etymology Dictionary). Ap...

Pergunta:

Há uns tempos perguntei ao Ciberdúvidas a etimologia da palavra Alvoco. Recebi resposta em 24/01/2002 com a definição dada no Dicionário Onomástico, de José Pedro Machado.

Em Agosto encontrei no Google Books o livro Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa, de Adalberto Alves, onde o autor inclui Alvoco como tendo origem árabe.

A origem latina da palavra faz-me sentido, tanto mais que Alvoco é um afluente do Alva e nascem na mesma serra da Estrela. Por outro lado, surge e percorre uma região que foi fronteira durante um longo período entre mouros e cristãos.

Venho pedir a vossa ajuda para esclarecer qual a verdadeira origem da palavra.

Obrigada.

Resposta:

Em toponímia, nem sempre é fácil afirmar que a verdadeira origem de um nome é esta ou aquela. Trabalha-se muitas vezes com hipóteses, quando não há documentação que indique com clareza a história da palavra, como acontece neste caso.

A sequência al- da forma Alvoco sugere origem árabe, hipótese que se conjuga com a história da região, até aos séculos XI-XII na fronteira política entre reinos cristãos, nos quais predominavam os dialetos romances, e reinos muçulmanos, onde predominava a língua árabe. Contudo, a configuração do nome em questão não permite identificar com segurança a palavra árabe donde poderia provir, o que leva a supor que pode ser outra a sua origem. E, com efeito, não é de excluir outra etimologia, quando se sabe que há topónimos começados por al- sem origem árabe: Albergaria, Alvarães, possivelmente Alvito.

Sendo assim, deve ter-se em atenção que o Alvoco, sendo afluente do Alva, apresenta a terminação -oco, homófona do sufixo -oco, com o qual se formam, entre outros derivados, diminutivos de valor despetivo (cf. bicharoco, passaroco). Este aspeto é relevante, porque se identificam frequentemente afluentes cujos nomes são antigos derivados com base nos nomes de rios principais, às vezes com valor de diminutivo, outras com valor afetivo: Ave > Vizela (por *Avizela ou pela forma latina Avicella); Águeda > Agadão (neste caso, o sufixo -ão revestir-se-ia de valor afetivo).

Observe-se que, sem contestar o mérito que possa ter, o Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa,

Pergunta:

Permitam-me apenas um leve reparo [a propósito da resposta n.º 27 256]:

O p de Egipto sempre se pronunciou e pronuncia. Dou até um exemplo prático: no caso da  liturgia não passa pela cabeça de ninguém pronunciar a palavra «Egito». Só de caso pensado...

 

P.S. – Haverá um número reduzido de intelectuais que omite o p de Egipto? Acredito que sim.

Resposta:

É preciso distinguir grafia de pronúncia, e, historicamente, até há algumas décadas, a pronúncia consagrada de Egipto – única grafia aceite antes da aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 – era "Egito", com p mudo, ou, melhor, sem o segmento fónico [p], apesar de se dizer egípcio, com [p].

Sabe-se que era assim (e ainda é entre muitos falantes), porque na Base VI do Acordo Ortográfico de 1945 (AO 45) se inclui a grafia Egipto entre os muitos casos em que o p, embora  mudo, se mantinha para os harmonizar com formas afins – o exemplo mais acessível será egípcio, que tem p pronunciado.

Cito a Base VI do AO 45, sublinhando a referência à grafia Egipto:

«VI O c gutural das sequências interiores cc (segundo c sibilante), e ct, e o p das sequências interiores pc (e sibilante), e pt, ora se eliminam, ora se conservam. Assim:

[...] 4.° Conservam-se quando, sendo embora mudos, ocorrem em formas que devem harmonizar-se graficamente com formas afins em que um e ou um p se mantêm, de acordo com um dos dois números anteriores, ou em que essas consoantes estão contidas, respectivamente, num x ou numa sequência ps. Escreve-se, por isso: abjecto, como abjecção; abstracto, como abstracção; acta e acto, como acção ou activo; ...