Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Por que razão é considerado incorreto uma mulher dizer «o meu homem» em vez de «o meu marido», ao passo que um homem deve dizer «a minha mulher» em vez de «a minha esposa»?

Resposta:

O caso apontado é uma questão de sociolinguística, que diz respeito à distribuição e à avaliação de palavras e expressões por níveis de língua e pelos chamados socioletos, ou seja, os estilos discursivos característicos dos vários grupos sociais. Nesta resposta, não poderemos apresentar uma justificação baseada em circunstâncias históricas concretas, porque muitas vezes o uso de uma palavra ou expressão depende também de uma avaliação que é aceite coletivamente sem grande discussão (a não ser, quando, por exemplo, ocorrem mudanças sociais bruscas, em que grupos e indivíduos são levados a questionar os próprios usos linguísticos estabelecidos).

No português-padrão de Portugal e nos meios urbanos, nas classes média e alta, as expressões usadas e historicamente recomendadas são de facto «o meu marido» (não o «meu homem») e «a minha mulher». Nota-se, porém, que, a despeito de o discursivo normativo considerar como afetada e referencialmente desadequada a expressão «a minha esposa» («esposa» seria a noiva, a prometida que se desposa), o certo é que em certos meios essa forma continua bem viva quando se pretende conferir maior cortesia ao discurso; daí o frequente «cumprimentos à esposa», que, não obstante, muitos podem achar de mau gosto ou piroso.

Ainda sobre mulher, acrescente-se que as outras línguas românicas se assemelham ao português quando, ao contrário do que acontece com o par marido/homem, disponibilizam a mesma palavra quer para «mulher casada» quer para «ser humano do sexo feminino». Por exemplo, o espanhol distingue marido de hombre, mas apresenta mujer nos dois casos; e, em francês, que também marca a diferença entre mari...

Pergunta:

Quanto à construção abaixo, como classificar a locução «quanto mais» no contexto?

«Mal consigo andar agora, quanto mais correr, meu filho.»

Resposta:

Trata-se de uma locução adverbial: «Mal consigo andar agora, quanto mais correr.»

O dicionário da Academia das Ciências de Lisboa refere sobre esta locução adverbial: «ainda mais; ainda com maior razão ou intensidade (usa-se com valor de reforço ou intensificação de um elemento, relativamente a outro ou outros)», sendo equivalente a mormente, principalmente, «que fará» (exemplo da fonte consultada: «Conduzir a velocidade elevada é perigoso, quanto mais embriagado»).

Pergunta:

Nos últimos dias verifiquei que, nas notícias relativas à divisão interna no PS, os jornalistas recorrem por vezes à expressão «disputa pela liderança» dos socialistas.

Gostaria de saber se esta forma está correta e, em caso afirmativo, se é uma forma mais acertada do que «disputa da liderança» do PS.

Resposta:

Tendo em conta que disputa é um derivado regressivo de disputar (é a sua nominalização) e que este verbo é transitivo e se usa sem preposição («eles disputam a liderança»), o referido substantivo deverá em princípio associar-se ao seu complemento por meio de de, que é a preposição geralmente usada neste tipo de nominalizações: «alguém disputa a liderança»/«a disputa da liderança».

No entanto, entre substantivos que correspondem também a verbos transitivos, há alguns – por exemplo, amor/amar – que permitem que o complemento que exprime o objeto da ação assim nominalizada seja introduzido pela preposição por: «o amor das/pelas crianças». Sendo assim, o uso da preposição por poderá ser relevante em expressões relativas quer ao agente quer ao paciente da ação nominalizada: é o caso de  «a disputa deles pela liderança», parafraseável por «a disputa deles por causa da liderança», mas que não permite a alternativa *«a disputa deles da liderança» (mas são corretos: «a disputa da liderança entre eles» e «a disputa da liderança com ele»). De notar ainda que a regência construída com por está registada no Dicionário UNESP do Português Contemporâneo: «Na disputa do/pelo poder não há regras.»

Pergunta:

Acabo de ver, por acaso, a vossa resposta n.º 17 034 e gostaria de manifestar minha estranheza pelo facto de este site, sistematicamente, impor a pronúncia do chamado português europeu padrão (baseado na pronúncia de Lisboa), obliterando as outras realizações de pronúncias da língua portuguesa. Estou a falar, neste caso concreto, da pronúncia do ditongo escrito em que é só (e apenas só) na região de Lisboa que tem a pronúncia [ɐ̃j]. No resto de Portugal, não é pronunciado assim e em outros países de expressão portuguesa (como meu caso) também não. Por isso, eu acho estranho que o Ciberdúvidas não alerte que em outras variantes do português palavras como «têm, veem, vêm, deem, etc.» não são pronunciadas com dois ditongos, um a seguir ao outro ['ɐ̃jɐ̃j], mas são pronunciadas com uma vogal seguida de um ditongo ['eẽj].

Espero ter, humildemente, dado um contributo com esta pequena chamada de atenção e que eu esteja enganado ao pensar que o Ciberdúvidas quer «impor» a pronúncia lisboeta a não lisboetas e a não portugueses.

Resposta:

Quando se fala da norma-padrão de Portugal, os estudos gramaticais e linguísticos consideram geralmente que a pronúncia do ditongo grafado -em/-ém ou -ens/-em é a mesma do ditongo que ocorre na palavra mãe. Assim afirmam Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, 49): «[ãj]: correspondente às grafias ãe, ãi e, no português normal de Portugal em (em posição final absoluta) e en (no interior de palavras derivadas): mãe, cãibra; no português normal de Portugal: vem, levem, benzinho1

Não se trata, portanto, de uma imposição do Ciberdúvidas, mas antes de um aspeto que se considera característico da língua-padrão, a qual, por definição, exclui outras possibilidades e outras realizações de um mesmo sistema linguístico.

Apesar disso, é verdade que não se pode esquecer o facto de, a respeito dos ditongos nasais representados pelas grafias já indicadas, existir variação, como, aliás, se refere numa resposta anterior (nota 1). Deve, portanto, tomar-se devida nota da observação do consulente, que, do ponto de vista dialetal, tem toda a pertinência não só em relação ao Brasil, mas também aos falares de Portugal (regionalmente), Angola, Moçambique e de outros países.

1 É o que se afirma em A Pronúncia do Português Europeu (2006), disponível em linha nas páginas do

Pergunta:

«... deslocavam-se depressa mas em silêncio, o corpo ereto, à escuta enquanto caminhavam, apoiando-se ligeiramente nos calcanhares, baléticos nos movimentos, como se dançassem no mato em vez de andarem.» O Último Comboio para a Zona Verde, livro de Paul Theroux.

Balético existe no dicionário?

Resposta:

Nos vários dicionários a que temos acesso (impressos e em linha) e nos vocabulários ortográficos atualmente disponíveis, a palavra não está registada. Mas a verdade é que ela tem sido usada quer em textos literários quer em textos jornalísticos, estando documentada desde os anos 70 do século passado – Corpus de Referência do Português Contemporâneo. Além disso, é palavra bem formada, visto constituir um derivado sufixal do francês ballet, «dança artística», cuja adaptação ao português é balé (cf. Dicionário Houaiss). Digamos, portanto, que a palavra é legítima e que a sua ausência dos dicionários é uma lacuna que deve ser preenchida.