Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na minha área de investigação/ensino tem vindo a crescer nos últimos anos a utilização da palavra maltrato não como tempo verbal do verbo maltratar («eu maltrato») mas como substantivo, em substituição de «mau trato»/«maus tratos» (por exemplo, o maltrato físico). Não me parece uma utilização correta, mas, face à generalização do seu uso, gostaria de ter a vossa opinião – é correta, ou não, a utilização do termo nesse sentido?

Muito obrigada.

Resposta:

A palavra registada é maus-tratos, e não "maltrato". Os dicionários consultados apresentam-na com hífen e apenas no plural, atribuindo-lhe o significado de «delito de quem submete alguém, sob sua dependência ou guarda, a castigos imoderados, trabalhos excessivos e/ou privação de alimentos e cuidados, pondo-lhe, assim, em risco a vida ou a saúde» (Dicionário Houaiss; ver também Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, e Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).

Refira-se que a forma maltrato não figura como substantivo na maior parte dos dicionários a que temos acesso (impressos e em linha). Mas assinale-se que num dicionário brasileiro relativamente recente – Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (1.ª edição de 2004) – se acolhe a entrada maltrato, definida como «uso de violência física no trato com alguém» e «tratamento duro e ofensivo, insulto». Mesmo assim, numa perspetiva normativa mais conservadora, não se reconhece à forma maltrato o estatuto de substantivo (por derivação regressiva de maltratar), sendo ela antes interpretada como 1.ª pessoa do singular do verbo maltratar.

Em suma, como se levantam dúvidas quanto à correção de maltrato, a forma maus-tratos ainda se afigura como a mais adequada.

 

Pergunta:

Gostaria de saber que tipo de orações são as seguintes subordinadas que não têm nem verbo nem sujeito, e com quais conjunções podem ser construídas: «Quando possível,...», «Embora proibido,...», «Se necessário,...», «Apesar de confiantes,...». Se possível, gostaria de saber onde poderia achar mais informação sobre este tipo de construções.

Muito obrigado.

Resposta:

As orações adverbiais referidas na pergunta são um tipo de elipse, em que é possível omitir o verbo de ligação, porque ele «é inferível a partir da estrutura linguística em que ocorre» – cf. Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, p. 2352), e Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho (2003, p. 874/875).

Assim, «quando possível,...» é uma oração adverbial temporal elíptica; «se necessário,...», uma oração adverbial condicional elíptica*; e «embora proibido,...» e «apesar de confiantes,...» são orações adverbiais concessivas elípticas*.

 

eliptica, em Portugal + PALOP e Timor-Leste, enquanto no Brasil se registam as duas formas, com p e sem p: eliptica e elítica

 

Pergunta:

Recentemente a empresa Knorr lançou no mercado um concentrado para molho culinário a que chamou «Molho Cervejeira». A razão do nome deve-se ao facto de ter como ingrediente principal a cerveja.

Em minha opinião trata-se dum erro de português já que a palavra molho é masculina, logo, teria de ser «Molho Cervejeiro» ou «Molho da Cervejeira».

Gostaria de saber a vossa opinião sobre este tema.

Muito obrigado.

 

Resposta:

Efetivamente, o uso tradicional da palavra molho é feito com um adjetivo ou uma expressão que exprimam o aspeto, o ingrediente ou o modo de preparação que o distinguem: «molho branco», «molho de tomate», «molho à espanhola». Contudo, há exceções: «molho béchamel», por exemplo, em que béchamel não é historicamente um adjetivo (embora usado como tal)*, mas, sim, um substantivo que se justapõe como um aposto especificativo, como se à palavra molho se juntasse um nome que se comporta como uma marca, à semelhança de «molho Worcester» ou «molho Worcestershire», mais conhecido como «molho inglês» (esta expressão está mais generalizada, muito provavelmente pela dificuldade de leitura do topónimo inglês). Mas estes últimos exemplos obrigariam a que Cervejeira fosse interpretado como substantivo, pressupondo a existência de uma cervejaria ou uma fábrica de cerveja chamadas «a Cervejeira», e se escrevesse sempre com maiúscula, como nome próprio, de modo a permitir a referida justaposição: «molho Cervejeira». Caso não se use cervejeira como aposto, a alternativa será reconhecer que a palavra é adjetivo e pode haver erro de concordância, sendo necessário afeiçoá-la ao padrão tradicional, por exemplo, «molho cervejeiro» ou «molho à cervejeira» (neste caso, a maiúscula não seria obrigatória). 

* O caso de «molho béchamel», de que o Dicionário Houaiss faz o aportuguesamento bechamel, classificando a forma como um substantivo, configura o uso adjetival dessa palavra para modificar molho. O empréstimo béchamel vem do francês, tendo origem no nome próprio Béchamel, apelido do gastrónomo francês Louis de Béchamel (1630-1703), marquês de Nointel - cf.

Pergunta:

Tenho ouvido com frequência num programa de leilão de jóias a expressão seguinte: «este anel é mais valoroso que o outro», sendo empregado no sentido de uma jóia custar mais caro, ter valor monetário atribuído maior que a outra.

Estará certo o emprego deste termo valoroso neste sentido? No dicionário e na literatura sempre li este termo empregado no sentido de um valor subjetivo em que uma pessoa é valorosa por sua coragem, feitos e realizações geralmente em benefício de outros!

Ouvi também os termos valorar e monetizar, verbos que constam em dicionários mas que são pouco usados. É correto o seu emprego?

Podem me elucidar estas dúvidas? Desde já, obrigada.

Resposta:

Valoroso não é exatamente o mesmo que valioso. Apesar de o Dicionário Houaiss incluir entre as aceções de valoroso a de «que tem alto preço, valioso» (neste sentido económico, é arcaísmo), a verdade é que o adjetivo se aplica geralmente a alguém ou a algum gesto que se manifestam coragem ou bravura.

Quanto a valorar e monetizar, os dicionários consultados (Houaiss, o da Porto Editora, na Infopédia, e o Priberam) registam-nos sem observação especial, o que permite inferir a legitimidade do seu uso. Observe-se, contudo, o seguinte:

valorar usa-se efetivamente menos que valorizar, de que é sinónimo (cf. Corpus do Português);

monetizar, que significa «converter em moeda» e «usar como fonte de lucro» (Dicionário Priberam), tem tido uso escasso, mas o substantivo derivado monetização é frequente no tratamento de temas de caráter económico e financeiro (cf. Linguateca).

Pergunta:

Queria saber como se diz: «moro no Sobral de Monte Agraço», ou «em Sobral de Monte Agraço»? «Moro em Monte Abraão», ou «no Monte Abraão»? Qual a diferença? Também quero saber como se diz: «vou à Fátima», ou «vou a Fátima»?

Obrigada.

Diana Tavares

Resposta:

Apesar de haver quem diga «o Sobral de Monte Agraço», o uso oficial é sem artigo, conforme se documenta nas páginas do respetivo município (no distrito de Lisboa): «concelho de Sobral de Monte Agraço». Também Monte Abraão (concelho de Sintra) se usa sem artigo, pelo menos, no português culto. Finalmente, o topónimo Fátima, apesar de ter origem provável no nome próprio Fátima (cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa) não tem artigo definido; deve dizer-se, portanto, «vou a Fátima», quando se pretende referir a cidade e o santuário assim chamados.