Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Podemos considerar a forma fadigado já como um arcaísmo, dada a prevalência do uso de fatigado?

Aliás, qual dos termos é mais antigo: fadiga ou fatiga?

Obrigado.

Resposta:

As formas fadigado e fadigar serão arcaísmos, tendo em conta que têm pouco ou nenhum uso, suplantados que parecem ter sido no uso atual por fatigado e fatigados. Mas não são casos lineares. Por outras palavras são arcaísmos que exigem certo matiz na sua interpretação histórica.

Fadigar está atestado desde o século XV e parece ser a forma romance previsível pela sonorização do t latino intervocálico (fatigare).1 Contudo, fatigar tem atestações do século XIII, o que pode ser surpreendente, porque, se for palavra patrimonial, isto é, se for palavra principalmente transmitida por via popular, já deveria exibir uma dental vozeada – [d].

Parece, portanto, que, por uma razão, que, para já, não se consegue apurar desde a Idade Média, o verbo e o nome respetivo têm duas variantes, uma mais inovadora (fadiga, fadigar, românicas) e outra mais conservadora (fatiga, fatigar, ainda latinas). É possível (não se encontraram fontes que o confirmassem) que nestes itens tenha havido intervenção erudita, por exemplo, por via do latim eclesiástico.

Fadiga é, portanto, o nome que representa essa forma medieval inovadora (em relação ao latim). Contudo, quando se trata do verbo, usa-se hoje fatigar, cujo particípio passado é fatigado, que ocorre como adjetivo («gente fatigada»). Trata-se, portanto, de formas divergentes que se fixaram no uso lexical, muito embora fossem concorrentes em fases mais antigas da língua.

 

1 Ver Dicionário Houaiss. Na passagem do lat...

Pergunta:

«Certo momento, o fumo estava perto do chão e entrámos em casa.»

Relativamente à frase apresentada, agradecia que me esclarecessem se é possível usar-se a expressão temporal «certo momento».

Obrigado.

Resposta:

O uso de «certo momento» sem preposição no contexto apresentado é discutível. Correto é, sem dúvida, dizer e escrever, por exemplo,  «a certo momento, o fumo estava no chão e entrámos em casa», como frase que faça parte de uma narrativa.

As expressões mais correntes são «a certo momento», «em certo momento» ou «num certo momento», podendo certo alternar com dado, conforme se atesta no Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho, ou no Corpus do Português (CP), de Mark Davies:

(1) «A dado momento, o diplomata lembrou os compromissos que tínhamos assumido anteriormente» (Énio Ramalho, op. cit.).

(2)«Em certo momento, porém, os olhos de Alberto enxergaram algo de mui estranho, atrás do canavial» (Ferreira de Castro, A Selva, 1967, in CP).

(3) «Num certo momento um canto estridente de pássaro caiu no silêncio e Antonio abriu os olhos [...]» (António Olinto, Sangue na Floresta, 1992, in CP).

Locuções alternativas são «a certa altura» e «a dada altura».

Também se registam as locuções «a partir de/dum certo momento» e «até (um) certo momento» (cf. CP).

Pergunta:

Se "alagoa" é forma antiga de lagoa, será que "alagares" é forma antiga de lagar?

No contexto da frase não me parece que [o escritor algarvio] José Dias Sancho (1898-1929) se referisse a «fazer um lago de água» ou «inundação».

A seguir segue passo abonatório retirado da obra de José Dias Sancho, Deus Pan e Outros Contos:

«Falava de mundos e fundos, emborcava da rija como um valente e, se adregava fazer negócio cheio, parecia o rei do reino! Era uma perfeição ouvi-lo discorrer sobre os alagares e as vindimas. Sabia do seu ofício, lá isso…» Manuel Tomé, in Deus Pan e Outros Contos, p. 49

Aguardo, sempre ansiosamente, pelos vossos comentários.

Resposta:

Alagoa e alagar (no plural, alagares) não são formas antigas de lagoa e lagar, respetivamente. Na verdade, são variantes da linguagem popular.

Alagoa tem registo nos dicionários gerais como o mesmo que lagoa1.  Quanto ao nome alagar, trata-se de um homónimo do verbo alagar (geralmente, com o significado de «inundar, encharcar») e vem a ser o mesmo que lagar, conforme se atesta em estudos sobre falares regionais2.

Trata-se, na verdade, de formas identificáveis no discurso popular, portanto, mais regionalizado, que resulta da adjunção (prótese) da partícula a- a uma palavra, como se observa no Dicionário Houaiss:

«[a ocorre] como morfema protético, em palavras como baixar:abaixar, levantar:alevantar, recuar:arrecuar, ruinar:arruinar, sentar:assentar, ou em palavras que incorporam o artigo a, como amora, abantesma, ambas as ordens, de natureza popular, não raro anteriores ao s. XVI [...].»

Por outras palavras, a partícula a-, que não parece ter significado especial, encontra-se em vocábulos (abaixar, arruinar, assentar, amora) que são correntes e fazem parte da língua padrão quer em formas mais associadas à variação regional e sociolinguística – caso de arrecuar bem como de alagoa e alagar.

 

1 Ver Dicionário Houaiss.

2 Ver al...

Pergunta:

Gostaria de saber qual/quais (o) processo(s) fonológico(s) que se verificaram na evolução do latim REGNU- para reino.

Tenho dúvidas sobre se terá havido apenas uma vocalização do g ou, pelo contrário, uma síncope do g e uma ditongação do e por influência de rei.

Agradecia muito que me esclarecessem.

Resposta:

É um caso anómalo, que pode ter ocorrido efetivamente por analogia com rei, conforme explica Manuel Ferreira, em Gramática Histórica Galega (Edições Laiovento, 1996, p. 157), obra perfeitamente válida para o estudo do português medieval até ao século XIV:

«Nalgun caso vocaliza a consoante oclusiva [...]: AGNES > Einés > Inés (antrop.) REGNARE > reinar REGNU > reino [...].»

E em nota, o mesmo autor acrescenta (ibidem): «Tanto en reino como en reinar puido existir influencia de rei

Em suma, é um caso de mudança irregular no qual convergiram fatores diferentes, por um lado, com fatores fonéticos (vocalização de [g]) e, por outro, pela pressão da analogia com outros itens lexicais morfológica e semanticamente afins.

Pergunta:

Tenho uma dúvida sobre «nó de pinho». Há hifens em «nó de pinho»? Por quê?

Outro detalhe, essa palavra composta não consta no Dicionário Houaiss (2009).

Muito obrigada!

Resposta:

É palavra que se escreve sem hífen: «nó de pinho».

Embora nos dicionários consultados1 para elaborar esta resposta não encontre registo, a expressão «nó de pinho» ocorre comummente em páginas da Internet, em referência a um nó «originário da inversão dos galhos dos pinheiros, isto é: a parte que fica engastada no tronco, envolvida pelas camadas lenhosas» ("Pinheiro-do-paraná", Circular Técnica, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, 2002). É, pois, um nódulo que se forma no tronco de um pinheiro-do-paraná (Araucaria angustifolia)2, uma espécie típica do sul do Brasil.

São exemplos de uso deste termo:

(1) «[...] o nó de pinho é usado para tratar catarro, infecções respiratórias, como resfriados, bronquites, sinusites e faringites.» ("Pinheiro: conheça suas autilidades, Sergomel).

(2) «[...] [o nó de pinho é] aproveitado para obras de torno, de ornamentação para artefatos caseiros e muito utilizado em peças artesanais e artísticas de real beleza, em virtude de sua coloração e formas atraentes» ("Pinheiro-do-paraná", Circular Técnica, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, 2002)

 

1 Foram consultados ...