Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Diz-se caloriar, ou transpirar?

Resposta:

O verbo em questão tem a grafia calorear e é usado no português de Angola com o significado de «estar com muito calor, suar» (Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, na Infopédia). Trata-se de um neologismo do português angolano (cf. ibidem), o qual corresponde a suar ou transpirar nos outros países de língua portuguesa.

Pergunta:

É correto dizer «jogar para o lixo» ou «jogar no lixo» em português europeu?

Resposta:

No português europeu, não é incorreto usar jogar («jogar para/no lixo»)1 como sinónimo de deitar («deitar para/no lixo»). Note, no entanto, que esse uso é sobretudo regional (frequente, por exemplo, no Sul). Em textos utilitários, nos quais se deve usar um tipo de linguagem mais padronizado, aconselha-se deitar. Por exemplo, numa campanha de sensibilização promovida por uma entidade pública e dirigida a todo o país, será mais adequado ou menos marcado regionalmente empregar o verbo deitar: «Deite o lixo nos contentores.»

1 No português do Brasil, parece haver preferência por «jogar em», equivalente a «deitar em», que é típico da língua-padrão de Portugal. Note-se ainda que «deitar fora», expressão usada na variedade europeia, corresponde a «jogar fora» entre falantes brasileiros (cf. s.v. jogar, Dicionário Houiass e Dicionário UNESP do Português Contemporâneo).

Pergunta:

Qual destas frases utiliza a forma correcta?

A) «Para lá talvez caminhemos, sonâmbulos, a passos de caranguejo.»

B) «Para lá talvez caminhemos, sonâmbulos, em passos de caranguejo.»

Existe alguma diferença entre as duas formas? Se existe, qual o significado de cada uma delas?

NOTA: O «para lá» refere-se ao Portugal pré-1974, a propósito de umas fotografias que o fotógrafo Alfredo Cunha acaba de partilhar no Facebook.

Resposta:

A expressão tradicional (ou seja, fixa) é «a passo de caranguejo», com a preposição a. Existe também «a passos largos» («rapidamente»), incluindo a mesma preposição. De uma maneira ou de outra, se a frase apresentada pretende basear-se nestas expressões fixas, afigura-se como formulação mais adequada a que apresenta a preposição a: «a passos de caranguejo...».

Pergunta:

Qual o significado da expressão «sem espinhas»? Depois de um jogo de futebol em que o resultado foi de 3-1, o adepto da equipa ganhadora disse: «Sem espinhas!»

Resposta:

Não encontramos registo da expressão nas fontes de que dispomos. No entanto, dado que quem a profere é adepto da equipa ganhadora, infere-se que «sem espinhas» significa o mesmo que «sem dificuldade» ou seja, «foi fácil» (ou, para usar outro idiomatismo, «foi canja»). A origem da expressão é claramente metafórica: se é mais fácil comer peixe sem espinhas, então uma vitória que foi fácil é comparável a essa situação.

Pergunta:

Vulgarizou-se «quais é que são» por «quais são». É permitido?

Resposta:

É permitido, é totalmente normal na oralidade e aceita-se mesmo na escrita, embora muitos normativistas do século passado achassem que havia algum abuso na construção.

Vasco Botelho de Amaral, no seu Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas da Língua Portuguesa (s. v. «é que, foi que»), criticava o «uso descomedido» de «é que», mas verificava que o seu emprego não é historicamente um galicismo, podendo atestar-se nas obras de Alexandre Herculano. Rodrigo Sá Nogueira (Dicionário de Erros e Problemas da Linguagem, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1974) também se referia a esse abuso, mas assinalava do mesmo modo que a expressão tinha, no português, tradição anterior à influência francesa do século XIX.

No final do século XX, a expressão «é que» é descrita sem qualquer observação que restrinja ou condene a sua ocorrência. Assim, por exemplo, Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, págs. 504/505) referem-se à «locução invariável "é que"» e descrevem-na sem qualquer juízo normativo desfavorável. Atualmente, a sequência «é que» é descrita por linguistas como locução que participa em construções de foco (clivagem), ou seja, em construções que dão relevo especial a certos constituintes frásicos («o meu clube é que ganhou»).