Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Como classificar «de água», na seguinte frase?

«Agora uma estreita tira de água e monte que se avistava entre dois prédios (...)»

É que não se enquadra, a nosso ver, nos casos do complemento do nome, mas parece-nos necessário para a inteligibilidade da frase. Ex.: «Passa-me a tira» (será sempre necessário dizer de quê...).

Obrigada.

Resposta:

Palavras como tira, pedaço, bocado, porção, dose, pinga são consideradas parte integrante de expressões quantitativas nominais («uma tira de veludo», «um pedaço de tecido», «uma dose de arroz», etc.). Note-se que o termo «expressão quantitativa nominal» não faz parte da terminologia usada nos ensinos básico e secundário em Portugal (cf. Dicionário Terminológico), embora se encontre em obras e estudos elaborados no âmbito da linguística (cf. M.ª Helena Mira Mateus et al. Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, págs. 352/353). Observe-se ainda que, apesar de incluírem grupos preposicionais iguais ou semelhantes a complementos nominais (ibidem), estas expressões quantitativas têm um comportamento próprio, porque o significado global da expressão é sempre dado pela expressão quantificada (ibidem): «uma tira de veludo» não deixa de ser "veludo", ao contrário das estruturas que incluem verdadeiros complementos nominais («a invasão do Iraque» não significa «Iraque» nem «parte do Iraque»).

Pergunta:

Atentemos neste excerto do tratado monumental de Vitrúvio que colige saberes arquitectónicos – « […] si autem natura loci impedierit […].» Traduzi-lo-ia por «mas se a natureza do lugar [o] tiver impedido», substituindo o futuro perfeito do indicativo latino através do futuro perfeito do conjuntivo português. Ora, ao fazê-lo, garanto, por um lado, que a nuance semântica apologética da tentativa se mantém e, por outro, que se respeita o sistema hipotético do português. Devido a este mesmo último entrave, o francês, cioso da dita nuance semântica, poderia traduzi-lo por «mais si la nature du lieu [l’]a empêché», visto que não se pode fazer seguir um futuro a um «si» hipotético. Agora, a tradução bastante recorrente por presente é absolutamente despropositada em português e em francês (a saber: «mas se a natureza do lugar [o] impede»/«mais si la nature du lieu [l’]empêche»).

Pedia um comentário aos meus escritos, com especial enfoque sobre a importância de se salvaguardar a dita nuance semântica.

Resposta:

O tempo verbal em questão, no caso deste passo do famoso tratado de Vitrúvio, não será propriamente o futuro perfeito do indicativo latino, mas, sim, o perfeito do conjuntivo. Se é verdade que o futuro perfeito do indicativo e o perfeito do conjuntivo apresentam formas comuns em todas as pessoas e números, exceto na primeira pessoa do singular, importa não esquecer que o primeiro se utiliza em orações temporais, enquanto o segundo tem maior cabimento em orações condicionais.

Em latim, existem basicamente três tipos de orações condicionais: as de período real (em que a condição é enunciada como real), as de período potencial (em que a condição se considera possível) e as de período irreal (em que a condição se exprime como irreal). No segundo tipo, ou seja, nos casos em que se considera a condição como possível, emprega-se em ambas as orações (ou seja, tanto na principal como na subordinada) o conjuntivo presente ou o perfeito do conjuntivo, embora se possa usar igualmente o futuro do indicativo na oração principal.

Nestas orações condicionais de período potencial, a utilização do perfeito do conjuntivo em vez do conjuntivo presente comporta, de facto, pelo menos em termos teóricos, certo matiz semântico, pois o perfeito do conjuntivo, além de enunciar a condição como possível, indica que se trata de um facto que alguma vez há de ser passado. No entanto, em ambos os casos, ou seja, quer se empregue o conjuntivo presente ou o perfeito do conjuntivo em latim, a tradução usual e recomendada em português socorre-se do futuro imperfeito do conjuntivo. Sendo assim, a tradução correta de «si autem natura loci impedierit» será «mas se a natureza do local (o) impedir». A tradução manter-se-ia, caso Vitrúvio tivesse usado o conjuntivo presente («si autem natura loci impediat»).

Poderia eventualmente pensar-se no recurso à conjugação per...

Pergunta:

Estou com uma dúvida acerca desta frase:

«O rapaz elegeu-se presidente.»

O verbo eleger-se neste caso é pronominal, a frase está na voz passiva, ou é uma voz reflexiva? De mais a mais gostaria de saber como distinguir essas três classificações em casos como esse.

Obrigado.

Resposta:

No caso apresentado, o verbo tem forma reflexiva e pode enquadrar-se naquilo que E. Bechara designa como «voz reflexiva» (Moderna Gramática Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2002, p. 222); o verbo assim usado chama-se pronominal (ibidem e p. 262), porque se se refere ao sujeito da forma verbal e, em certos casos, pode ser reforçado por «a si mesmo»; «ele elegeu-se presidente a si mesmo». Contudo, há verbos que são pronominais, muito embora o pronome átono associado não seja, a rigor, reflexivo: «ele esforçou-se muito». Quer isto dizer que a conjugação pronominal nem sempre é reflexiva (ver Bechara, p. 222, observação 3.ª).

Na passiva de se, que Bechara inclui na voz passiva, não é possível o reforço com «a si mesmo», e o agente da ação fica indeterminado: «na reunião, elegeram-se dois secretários» (não se sabe quem exatamente os elegeu, a não ser que o contexto permita depreendê-lo). Esta situação é um uso especial da conjugação pronominal, e, de facto, Bechara (ibidem e p. 563) fala em «passiva pronominal», quando ocorre com verbos transitivos: «elegeram-se dois secretários». Neste caso, considera-se (ibidem) que se deve distinguir a voz passiva («foram eleitos») da voz reflexiva passiva («elegeram-se»).

Pergunta:

Gostava de saber a origem de águas-furtadas. Ou seja; a razão de se denominar água-furtada ao andar de uma casa com janelas para o telhado. Furtada(s) porquê?

Muito obrigado.

Resposta:

Com a bibliografia de que disponho, não me é possível definir com segurança a etimologia de águas-furtadas ou água-furtada. Há quem sugira que se deve à noção de que, num edifício, o aproveitamento da área de sótão existente entre as vertentes do telhado («as águas») é encarado metaforicamente como uma forma de "furtar", isto é, de tirar partido desse espaço.

Pergunta:

É correcta a frase assim: «Tudo aparece como se (fora) escrito com letras de fogo»? Ou devia-se dizer assim: «Tudo aparece como que escrito com letras de fogo»? Ou simplesmente «Tudo aparece como escrito com letras de fogo»? Qual o vosso parecer?

Grato.

Resposta:

Recomenda-se «como que escrito».

Usa-se «como se» seguido de oração com o verbo no conjuntivo («como se estivesse escrito»). Depois de «como que», ocorre uma oração com o verbo no modo indicativo ou um predicativo do sujeito realizado por um adjetivo ou uma expressão nominal:

1. «Com um olhar de espanto, ela como que gritava em silêncio» (oração).

2. «Tudo aparece como que escrito com letras de fogo» (predicativo do sujeito).

3. «Tudo aparece como que uma visão paradisíaca» (predicativo do sujeito).