Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Minha dúvida é sobre a regência do verbo auxiliar.

Devo dizer «este programa auxiliou a detecção de erros», «este programa auxiliou à detecção de erros», ou «este programa auxiliou na detecção de erros»?

O dicionário indica que auxiliar é transitivo direto, porém acredito que se considerem «pessoas» como objeto direto e «detecção de erros» como complemento.

Por exemplo: «Este programa auxiliou-nos na detecção de erros.» Ao se retirar tal objeto, a forma correta da construção apresentada seria, portanto, «este programa auxiliou na detecção de erros»?

Resposta:

Pode escrever com igual correção «este programa auxiliou a detecção de erros» e «este programa auxiliou na detecção de erros».

Com os significados de «contribuir (para)» e «facilitar», o verbo auxiliar pode ser usado quer como verbo transitivo direto quer como transitivo indireto; ex.: «a contenção da violência urbana auxilia a melhoria da imagem do país»; «a comunidade auxiliou muito na última campanha» (do Dicionário Houaiss).

O verbo em referência pode ainda ser utilizado noutras aceções (cf. idem):

– «dar auxílio a; ajudar, socorrer»: «auxiliou o acidentado» (transitivo direto); «auxiliamos os refugiados na remoção para outros países» (bitransitivo);

– «trabalhar junto a alguém mais experiente ou graduado, na qualidade de ajudante, assistente etc.»: «auxilia o chefe do departamento» (transitivo direto).

Pergunta:

A palavra "coensaio" existe? Pela lógica de coeducação, é correto usar "coensaio"? Ou "co-ensaio"?

Resposta:

Ao abrigo do novo acordo, deve escrever coensaio.

Note-se que, no âmbito do anterior acordo – o de 1945 –, deveria escrever-se co-ensaio, com hífen, conforme a Base XXIX, 9.º:

«9.°) compostos formados com o prefixo co-, quando este tem o sentido de «a par» e o segundo elemento tem vida autónoma: co-autor, co-dialecto, co-herdeiro, co-proprietário; [...].»

Pergunta:

Relativamente à posição dos pronomes pessoais em adjacência verbal, uma das regras é que o pronome deve ser colocado antes do verbo quando está integrado numa oração subordinada.

Ex.: «Tu prometeste que consertarias a fechadura.»/«Tu prometeste que a consertarias.»

Então, por que motivo na frase «Não te preocupes, que ele repõe o dinheiro», se tivermos de substituir «o dinheiro» por um pronome pessoal, a frase fica «Não te preocupes, que ele repõe-no.» Nesta frase o pronome também não está integrado numa oração subordinada?

Obrigada.

Resposta:

Trata-se de uma exceção. Na frase «Não te preocupes, que ele repõe-no», a conjunção que introduz uma oração coordenada, e não subordinada, tendo valor explicativo, como sinónimo de pois. Dado que esta conjunção (mais recentemente denominada advérbio conetivo) não exige que o pronome átono preceda o verbo, ou seja, não funciona como atrator da próclise, compreende-se que a conjunção que revele o mesmo comportamento quando ocorre com o referido valor semântico.

Pergunta:

Na expressão «Mariana olhou a sua folha de papel em branco...», a palavra branco é nome, ou adjetivo?

Resposta:

Não havendo na locução em apreço uma palavra que branco modifique, infere-se que se trata de substantivo, como acontece no seguinte contexto:

(1) «temos também esta estante em branco» = «temos também esta estante na cor branca»

Note-se que «branco» pode substituir globalmente «a cor branca», que tem por núcleo um substantivo; logo, na locução adverbial «em branco», a forma branco ocorre como substantivo.

Acrescente-se que «em branco» tem as seguintes aceções, segundo o Dicionário Houaiss:

«1 baldado, sem efeito, frustrado. Ex.: ficar com as esperanças em b.; 2 ludibriado, enganado. Ex.: o sócio o deixou em b.; 3 passado sem dormir (diz-se esp. de noite); em claro; 4 sem ter realizado alguma coisa. Ex.: passei em b. todos aqueles anos; 4.1 sem nada haver estudado ou aprendido; 4.2 de estômago vazio; em jejum; 4.3 em jejum sexual; 5 que nada apresenta manuscrito ou impresso (ger. papel). Ex.: folha em b.; 6 não premiado (diz-se de bilhete, rifa etc.). Ex.: meu gasparinho saiu em b.; 7 sem entender nada. Ex.: ele ficava em b. naquela aula; 8 sem dinheiro.»

Pergunta:

Em castelhano são muito comuns frases do tipo hay + que + infinitivo, por exemplo: «a esto hay que sumar propuestas creativas como...»; «Hay que trabajar»; «hay que oír y hay que hablar», etc. São corretas e de uso aconselhavel em português as frases com a construção + que + infinitivo? Que outras formas sem o verbo haver são sinónimas e de uso geral?

Muito obrigado.

Resposta:

Numa frase declarativa afirmativa, há gramáticos normativistas que consideram «haver que» como intrusão do espanhol, e, como tal, recomendam a sua substituição pelas locuções «é necessário», «é preciso» (cf. Rodrigo de Sá Nogueira, Dicionários de Erros e Problemas de Linguagem, s. v. há que, Lisboa, Clássica Editora, 1989). Contudo, os mesmos autores aceitam a expressão «não há que...», como se documenta num comentário do Dicionário Houaiss (s. v. haver) sobre esta construção:

«[...] outro uso do v[erbo] haver em combinação com a partícula que ocorre em orações negativas do tipo não há que duvidar do que disseram; não há que se conformar com o que aconteceu; não havia que surpreender-se, nas quais a oração substantiva objetiva (obj[eto] dir[eto] de haver) é integrada pela conj[unção] que (Epifânio Dias considera que conj[unção] causal, enquanto alguns gramáticos preferem considerar que há elipse de um substantivo – ou, mais exatamente, de um substantivo + preposição – o que faz do que um pron[ome] relativo: não havia [razão por] que surpreender-se; não há [coisa de] que duvidar) [...].»

Observe-se, mesmo assim, que «há que» é atualmente usado em português sem que haja a noção de que se trate de castelhanismo. Evanildo Bechara, na sua Moderna Gramática Portuguesa (Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2002, p. 232), refere-se a esta construção como uso que se verifica «mais modernamente», sem qualquer comentário condenatório.