Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Segundo Cândido de Figueiredo, excelente autor português, cujas lições ainda são bastante proveitosas, o verbo das orações interrogativas diretas tem sempre de anteceder o sujeito. Exemplo: «Como pode o homem sublimar a força da libido?» A construção «Como o homem pode sublimar a força da libido?» não teria nenhum apoio nos ensinos do conspícuo mestre lusitano. Se não estou equivocado, ele afirmava que constituía erro colocar o verbo depois do sujeito nas interrogativas diretas. Em minha humílima condição de estudioso da língua portuguesa, concordo com a doutrina dele. Creio que essa é a melhor posição para o verbo nessas construções. Qual é a opinião do Ciberdúvidas? Nas interrogativas diretas, é errado deixar o verbo depois do sujeito?

Muito grato!

Resposta:

O consulente não dá referência da obra que refere, nem eu pude localizá-la. De qualquer modo, o que o gramático português Cândido de Figueiredo enunciou, numa perspetiva prescritivista, sobre a ordem frásica em frase interrogativa é confirmado pela descrição do uso vigente do português europeu em gramáticas mais recentes — e também por dados do português do Brasil, mas neste caso a par da aceitação do seu caráter opcional.

Por exemplo, na Nova Gramática do Português Contemporâneo, Celso Cunha e Lindley Cintra afirmam (1984, pág. 163):

«A inversão VERBO + SUJEITO verifica-se em geral:

a) na orações interrogativas:

Que fazes tu de grande e bom, contudo?

(Antero de Quental, SC, 64.)

Onde está a estrela da manhã?

(Manuel Bandeira, PP, I, 233.)»;

Contudo, há exceções a este uso, conforme se assinala na Gramática da Língua Portuguesa de M.ª Helena Mira Mateus et al. (2003, pág. 471):

«São gramaticais as interrogativas com constituintes [...] nominais, adverbiais ou quantificadores isolados (que, o que, onde, quando, como, qual), pouco informativos, "não dicursivamente ligados", em posição inicial quando o sujeito [...] [,] realizado lexicalmente, aparece em posição pós-verbal [«(O) que estiveste tu a fazer»; «Onde trabalha a Maria?»; «O que leu a Maria?»].

Pergunta:

«Fique o mundo sabendo que Colombo foi feliz não quando descobriu a América, mas sim quando a estava por descobrir. Em verdade afirmo que o trecho mais alto da sua felicidade foram aqueles três dias antes da descoberta do Novo Mundo, quando a equipagem amotinada e desiludida esteve a ponto de aproar de volta para a Europa. Não era o Novo Mundo que importava, mesmo que, de tão real, lhe caísse ombros abaixo» (Excerto de O Idiota).

No final desse trecho, há um período cuja análise sintática me traz dúvidas. Veja-se:

«Não era o Novo Mundo que importava, mesmo que, de tão real, lhe caísse ombros abaixo.»

Oração principal: «Não era o Novo Mundo que importava»

Oração subordinada adverbial concessiva: «mesmo que lhe caísse ombros abaixo»

E quanto a «de tão real», que, na verdade, é «de tão real(que era)»? O que dizer dela? Parece-me que tal oração funciona como principal em relação a «mesmo que lhe caísse ombros abaixo», o que levaria esta a ser simultaneamente concessiva e consecutiva. Para ilustrar dou um exemplo de oração consecutiva semelhante: «A cena era tão real, que ela se quedou emocionada.»

Pergunto: é possível tal análise?

Outra possibilidade que me ocorre é tratar-se de oração explicativa: «mesmo que lhe caísse ombros abaixo, de tão real que era» («tão real ela era», «pois tão real ela era»).

Obrigado.

Resposta:

Do ponto de vista sintático, a sequência «de tão real» não tem estatuto oracional. Trata-se, sim, de um adjunto adverbial com valor causal, constituído pela preposição de e por um adjetivo associado por um advérbio numa construção de intensidade. Evanildo Bechara refere-se a este tipo de adjunto adverbial na Moderna Gramática Portuguesa (Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2002, pág. 444; mantenho a ortografia original):

«[No adjunto adverbial de causa] pode vir um adjetivo usado neutralmente, para expressar a idéia de causa, aproximando o adjunto adverbial do anexo predicativo:

Os marginais fugiram de medrosos.

Por teimoso não viajou conosco.»

Refira-se que o exemplo «os marginais fugiram de medrosos» aceita a junção do advérbio de intensidade tão: «os marginais fugiram de tão medrosos». Esta sequência é interpretável como «os marginais fugiram de tão medrosos que estavam», mas tal interpretação não implica que se classifique sintaticamente a sequência «de (tão) medrosos» como uma elipse, tendo em conta, por exemplo, que a análise de Bechara não recorre ao completamento de tais adjuntos adverbiais. Deste modo, proponho que se analise «de tão real» como um adjunto adverbial de valor causal ou explicativo.

Pergunta:

Nenhum dos dicionários de língua portuguesa que consultei (Porto Editora, Houaiss, Texto Universal, Lello, Aurélio, Academia das Ciências) inclui o vocábulo "titularização", apesar de este ser muito utilizado nos domínios financeiro e económico, referindo-se a títulos e/ou valores mobiliários. Surge em expressões como: «titularização de créditos»; «veículos de titularização»; «operação de titularização». Será que existe tal termo, ou tratar-se-á de um neologismo (ainda não dicionarizado) específico da área económico-financeira?

Resposta:

Penso que o próprio consulente vai dando a resposta à pergunta que faz. Se o termo titularização está a ser usado, então isso é prova de que existe; e, se é neologismo, nem por isso deve deixar de existir. Ou seja, como aqui se tem dito, a falta de uma palavra neste ou naquele dicionário ou em todos eles é só indicativa de situações como, por exemplo, a de essas obras necessitarem de atualização ou a de os dicionários consultados terem caráter geral e, portanto, não lhes ser exigido o registo de termos especializados, ou ainda a de a palavra ter sido rejeitada porque não se conformava com certos critérios seguidos pelo(s) lexicógrafo(s).

Uma consulta no Google obtém 83 800 ocorrências para titularização, sendo que 37 900 ocorrem em páginas do domínio .pt. e 25 900 em páginas do domínio .br. Limitando a pesquisa ao último ano (de 2011 até ao momento em que redijo esta resposta, outubro de 2012), obtêm-se 949 resultados em páginas .pt e 4111 em páginas .br. Tudo isto sugere que o aparecimento da palavra é anterior a 2011. E, com efeito, num trabalho académico datado de 2000 e disponível na Internet, encontra-se titularização como termo especializado associado à seguinte conceptualização (mantenho a ortografia original):

«Existem diversos entendimentos do que é a titularização. Inicialmente, o termo era aplicado ao processo de desintermediação (a substituição das funções de intermediários financeiros pela emissão directa de títulos pelas empresas para os investidores). Mais recentemente, titularização passou a descrever o processo de pool de activos relativamente homogéneos, mas ilíquidos, sua autonomização, mudança de titularidade e emissão de valores representativos.»

Esta informaçã...

Pergunta:

Gostaria de saber se é mais correto dizer «bolas de sabão», ou «bolhas de sabão», ou se não há um especial rigor no uso desta expressão.

Obrigado.

Resposta:

Se se refere às esferas soltas, de água e sabão, produzidas como passatempo infantil, eu diria intuitivamente «bolas de sabão» e reservaria as «bolhas de sabão» às calotes ou esferas produzidas à superfície da água em que se dissolveu sabão, por efeito de agitação. No entanto, o Dicionário Houaiss regista, como subentrada de bolha, a expressão «bolha de sabão», apresentando-a como sinónimo de «bola de sabão». Além disso, o Corpus do Português apresenta duas ocorrências de «bolha de sabão», interpretáveis como «bola de sabão», em textos de dois autores brasileiros, enquanto a expressão «bola de sabão» figura seis vezes, mas apenas em textos provenientes de Portugal. Uma consulta Google, apesar das suas limitações como meio fiável de identificação de ocorrências linguísticas (há, como se sabe, muitas repetições, muita cópia de texto de uns sites para os outros), permite, mesmo assim, obter resultados contrastantes entre o uso brasileiro e o de Portugal, conforme se trate de páginas do domínio .br ou do domínio .pt: nas primeiras, «bolha de sabão» alcança 1 140 000 resultados, e «bola de sabão», apenas 327 000; nas segundas, a relação inverte-se, tendo «bola de sabão» mais resultados (14 600) do que «bolha de sabão» (6360). Em suma, «bola de sabão» e «bolha de sabão» são expressões legítimas, parecendo que, em Portugal, há certa preferência pela primeira, enquanto a segunda aparenta ter maior favor por parte de brasileiros.

Pergunta:

No meio do ambiente acadêmico no curso de Ciência da Computação, deparo-me intermitentemente com o aportuguesamento da palavra inglesa correctitute para "corretude" e, pesquisado por todos os dicionários e por este fórum, percebo que não é, ao menos ainda, uma palavra oficial da língua portuguesa (nesta concepção). Defendo veementemente o uso de correção/correcção neste contexto, mas minhas preocupações são desdenhadas amiúde. Deparei-me, então, com outra palavra: "corretismo", que me soa um tanto confusa. Seria tal tradução a mais adequada de correctitude? Sei que esta é formada da fusão de correct e rectitude, o que nos levaria à formação da palavra "corretitude", fundindo, pelo mesmo princípio, correto + retitude ou corretidão, de correto + retidão; no entanto, nenhuma destas foi concebida. Deixando isto de lado, não pude deixar de notar uma certa semelhança de "corretismo" e "correctitude", essa, sim, registrada por alguns dicionários. Gostaria de opiniões mais bem fundamentadas a respeito destes três possíveis neologismos.

 

Resposta:

As áreas de especialidade são favoráveis à criação de numerosos neologismos, dada a necessidade de criar palavras unívocas que designem sem ambiguidades as realidades que são objeto de investigação. Se optar por correção, certamente que se consegue respeitar os padrões tradicionais do português, mas perde-se por causa da ambiguidade da palavra. Mas quanto a saber se as formas neológicas propostas estão corretas, é necessário ter em conta que não se pode falar em regras fixas neste domínio, nem se pode dizer que em tradução há sempre uma solução correta por oposição às demais, supostamente incorretas.

Neste contexto, confirmo que corretismo é palavra já dicionarizada com o significado de «procedimento isento de erros ou falhas; atitude correta, impecável por parte de alguém» e descrita como brasileirismo (Dicionário Houaiss). Quanto a "corretitude" e "corretidão", embora não atestadas, são neologismos bem formados, conforme o próprio consulente sugere, e que não precisam de ser explicados como fusão de correto e retitude ou retidão: basta considerar a possibilidade de juntar à base adjetival corret- (tema de correto) os sufixos -(i)tude ou -(i)dão (cf. Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, pág. 97). Quanto à forma "corretude", também não se pode rejeitá-la de todo, uma vez que parece seguir o modelo de completude, formado pela base complet- e o sufixo -ude, deduzido de palavras como virtude, juventude ou senectude (cf. Dicionário Houaiss).

Há, portanto, cinco possibilidades para traduzir o termo inglês. A opção por uma delas pode ser u...