Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Ao escrever um trabalho sobre reconstrução mamária após mastectomia por cancro, deparei-me com uma dúvida numa palavra que usamos na prática quotodiana, que não se encontra nos dicionários escolares. Refiro-me à palavra autólogo, que para nós significa a transposição de tecidos do próprio indivíduo de um sítio anatómico para outro (na mesma pessoa). A dúvida é se esta palavra existe em português ou se é um estrangeirismo, proveniente da palavra inglesa autologous, e se poderá ser usada, sem qualquer outra explicação, num texto não dirigido a médicos.

Obrigado.

Resposta:

O termo em questão está registado em dicionários gerais, como o iDicionário Aulete e o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa; neste último, define-se o adjetivo em apreço em duas aceções: «relativo ao próprio indivíduo» e, em medicina, «[relativo ao] que é feito com material do corpo do próprio paciente (ex.: transfusão autóloga, transplante autólogo)». Um dicionário especializado, o Dicionário Médico de L. Manuila et al. (Lisboa, Edições Climepsi, 2004; adaptação de João Alves Falcato), também acolhe este termo, atribuindo-lhe o significado de «relativo ou proveniente do próprio indivíduo» e remetendo-o para os termos autotransplante, autotransfusão, autoenxerto, que, de modo sintético, vêm a significar «transplante autólogo», «transfusão autóloga» e «enxerto autólogo», respetivamente. Apesar de a palavra ocorrer em dicionários gerais, deve-se ter em atenção o seu estatuto de termo médico, o que acarretará certamente, em obras para o público não especializado, a inclusão de um esclarecimento em nota explicativa ou em glossário.

Pergunta:

Ao ler o documento do acordo ortográfico, não encontrei nada sobre a obrigatoriedade de se colocar letra maiúscula no início das frases. Foi esquecimento, ou é mesmo facultativo?

Resposta:

Depois de ponto, é mesmo forçoso empregar maiúscula inicial para iniciar uma frase. Não acho que seja esquecimento, nem, claro, que o silêncio sobre o assunto signifique facultatividade, no contexto da aplicação do novo Acordo Ortográfico (AO). Penso que, pura e simplesmente, o novo AO segue a norma que o precedeu, o Acordo de 1945, que não enuncia o preceito da obrigatoriedade da maiúscula inicial no começo de nova frase. Contudo, não era assim que acontecia no Brasil, pelo menos, até finais de 2008, porque o Formulário Ortográfico de 1943 era bem explícito sobre o assunto, como se pode ler na instrução XVI:

«Emprega-se letra inicial maiúscula: 1.º – No começo do período, verso ou citação direta: Disse o Padre Antônio Vieira: "Estar com Cristo em qualquer lugar, ainda que seja no Inferno, é estar no Paraíso." "Auriverde pendão de minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que à luz do sol encerra As promessas divinas da Esperança..." (Castro Alves.) [...].»

No entanto, em Portugal, o Tratado de Ortografia Portuguesa de Rebelo Gonçalves (Lisboa, Editora Atlântida, 1947) refere como uso fundamental o da maiúscula «no começo de períodos ou de citações directas e bem assim no início de versos, caso este em que também é lícito, se não o impede a pontuação outro motivo, usar a minúscula [...]» (p. 291).

Pergunta:

Qual o significado da palavra Morungava (nome de um distrito do município de Gravataí)?

Resposta:

Sobre a origem deste topónimo do Rio do Grande do Sul não temos informação segura. O mais que encontramos é uma etimologia popular, sem valor científico (ver esta página):

«Contam os antigos que o nome "Morungava" tem origem num índio chamado "ungaba" ou "ungava" que habitava no morro local. Quem se referia ao índio e [à] sua morada dizia "o morro do ungava" e, daí, Morungava. [...]»

Convém assinalar que existe um topónimo brasileiro muito parecido, Morungaba, nome de um município no estado de S. Paulo, sobre o qual um artigo da Wikipédia diz ter origem numa expressão em tupi-guarani, com o significado de «colmeia de morungas, abelhas produtoras de dulcíssimo mel». Não pude confirmar esta etimologia, que me parece duvidosa, porque não encontro registo dicionarístico da forma "morunga".

Mesmo assim, penso que Morungava tem boas hipóteses de ter a mesma etimologia que Morungaba, porque a permuta entre as consoantes [v] e [b] não é fenómeno raro em português, que terá interferido na transmissão destes topónimos. Importa, por isso, referir Silveira Bueno1, que, no Vocabulário Tupi-Guarani-Português (São Paulo, Éfeta, 1998) regista como substantivo comum masculino a forma morungava, assim definida: «O marco, a balisa [sic], o sinal de limites entre duas herdades. De môrangaba, fazer, colocar sinal. Ribeirão.» (Nesta definição, «ribeirão» não é uma aceção, mas, sim, a indicação de que o substantivo é também nome de um ribeirão.) Na mesma obra, na secção dedicada à toponímia, Silveira Bueno regista Morungava, que tem a forma paralela Morungaba, como subst...

Pergunta:

Pretendo saber se existe a palavra criminogénos, pois li em um texto de natureza jurídica inserida na frase «novas mutabilidades imprimidas pelos fenómenos criminógenos».

Resposta:

A palavra criminógeno figura no Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (São Paulo, Editora UNESP, 2004), com o significado de «que incita à criminalidade; que causa crime» (exemplo: «o jogo do bicho é considerado um fator criminógeno»). No mesmo dicionário, é-lhe atribuída uma variante, crimógeno, usada na mesma aceção. Este vocábulo está também registado no iDicionário Aulete e ocorre no Dicionário Houaiss [neste dicionário, aparece incluído no verbete da entrada crimin(o)-].

Pergunta:

O verbo diligenciar é seguido de preposição, ou é transitivo direto?

Podemos dizer «diligenciar pelo gozo de férias»?

Resposta:

A frase apresentada está correta.

O verbo diligenciar usa-se frequentemente com um complemento oblíquo introduzido pela preposição por, como o verbo esforçar-se — «diligenciava por não se atrasar» —, podendo também ocorrer com a preposição em (Dicionário Houaiss de Verbos da Língua Portuguesa — conjugação e uso de preposições, Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2003).

Este verbo associa-se ainda a orações finais finitas e não finitas de infinitivo («Diligenciou para que o caso fosse resolvido [...]»; «[...] começou a diligenciar no sentido de minorar as péssimas condições em que aquelas pessoas se encontravam» — Winfried Busse, Dicionário Sintáctico de Verbos Portugueses, Coimbra, Livraria Almdeina, 1994) e sem preposição, seguido de infinitivo («saltando da cama, diligenciou aproximar-se da figurita imóvel do petiz» — idem).