Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem, se possível, a seguinte questão: Como se dividem e classificam as orações presentes neste terceto de Luís de Camões?

Estando em terra, chego ao Céu voando;

num´hora acho mil anos, e é de jeito

que em mil anos não posso achar um´hora.

Resposta:

A análise sintática da sequência de versos apresentada é a seguinte:

1. Os versos formam uma sequência constituída por duas orações coordenadas assindéticas (isto é, que se ligam sem conjunção), «estando em terra, chego ao Céu voando» e «num´hora acho mil anos, e é de jeito/que em mil anos não posso achar um´hora».

2. Por sua vez, estas orações coordenadas analisam-se do seguinte modo:

2.1. «estando em terra»: oração subordinada reduzida de gerúndio de valor temporal (equivalente a «quando estou em terra»)

«chego ao Céu voando»: subordinante

«voando»: oração subordinada reduzida de gerúndio com valor de simultaneidade (equivalente a «ao mesmo tempo que voo»)

2.2. «num´hora acho mil anos»: oração coordenada

«e é de jeito/que em mil anos não posso achar um´hora»: oração coordenada

«em mil anos não posso achar um´hora»: oração subordinada completiva (complemento da expressão «é de jeito que»).

Pergunta:

Sou natural de Aveiras de Cima, freguesia do concelho de Azambuja, onde ninguém se entende quanto ao gentílico.

Quando era criança, era natural chamar aos habitantes da terra aveirenses, o que propiciava a confusão com os habitantes de Aveiro. A partir de uma certa altura começou a deixar de se usar esta designação, e até a filarmónica local mudou o nome de Filarmónica Recreativa Aveirense para Filarmónica Recreativa de Aveiras de Cima.

Actualmente usa-se o termo aveirecense ou aveiricense, que me parece foneticamente errado. Já ouvi o termo cima-aveirense, que me parece mais adequado. Eu propunha o termo veirense, apenas porque, segundo os registos, seria o nome original, já muito antigo, da localidade. Teria havido um fenómeno de evolução fonética. Note-se que os naturais de Guimarães são vimaranenses. Afinal, qual é o termo correcto?

Resposta:

Entre as formas apresentadas pelo consulente, são possíveis aveirense e cima-aveirense. Como bem se observa na pergunta, aveirense tem realmente o grande inconveniente de se confundir com o gentílico relativo a Aveiro. Cima-aveirense também constitui alternativa a aveirense, tendo em conta o exemplo de Cima Corgo, donde se deduz a forma não atestada cima-corguense. No caso Aveiras de Cima, no qual Cima se segue ao topónimo Aveiras, é possível seguir o modelo de América do Sul ou África do Sul, aos quais correspondem formas gentílicas com inversão da marca de localização: sul-americano e sul-africano. Mas se tanto aveirense como cima-aveirense incomodam os naturais da localidade em apreço, então é de aconselhar o uso de perífrases como «de Aveiras de Cima», para modificar outros substantivos, como acontece com «Filarmónica Recreativa de Aveiras de Cima», com valor adjetival, ou de expressões nominais como «os de Aveiras de Cima», «os naturais de Aveiras de Cima», «a população de Aveiras de Cima».

A forma "aveirecense" é que não se afigura aceitável: a terminação -ecense não tem justificação nem morfológica e etimológica, visto pôr a hipótese de Aveiras ter origem em *

Pergunta:

Porque é uma conjunção coordenativa ou subordinativa?

Se puder ser ambas as coisas, gostaria de ver exemplos das duas situações.

Resposta:

Podemos encarar porque quer como conjunção coordenativa quer como conjunção subordinativa.

Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, págs. 577 e 581) classificam porque do seguinte modo:

a) como conjunção coordenativa explicativa, podendo substituir pois: «Dorme cá, pois quero mostrar-lhe as minhas fazendas.» (Aquilino Ribeiro, Malhadinhas Minas de Diamantes, Lisboa, Bertrand, 1958, pág. 45) = «Dorme cá, porque quero mostrar-lhe as minhas fazendas.»

b) como conjunção subordinativa causal: «Tenho continuado a poetar, porque decididamente se me renovou o estro.» (Antero de Quental, Cartas, 2.ª ed. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1921, pág. 357).

Em a), porque introduz a justificação de uma ordem («dorme cá»), pelo que marca valor explicativo. Em b), a conjunção introduz uma oração que se refere à causa do acontecimento ou situação expressos pela oração subordinante — trata-se de um porque causal.

Note-se, no entanto, que porque é muitas vezes ambíguo, marcando os dois valores. Por exemplo, no caso de b), também se pode dizer que porque é uma conjunção explicativa, na medida em que se justifica o enunciado «tenho continuado a poetar» (ver Textos Relacionados).

Pergunta:

Será que me podem esclarecer: em conversa, surgiu a frase «Ela deu à luz uma criança». A dúvida é em termos da identificação das funções sintáticas dos elementos constituintes desta frase. Sintaticamente, como posso classificar «à luz»?

«Ela» será o sujeito simples; «uma criança» será o complemento direto; e a expressão «à luz», como a posso classificar?

Resposta:

A locução «dar à luz» comporta-se como um todo, em que o verbo dar sofreu um processo de esvaziamento lexical e atua como verbo-suporte (gramaticalização; cf. Textos Relacionados). Deste modo, a referida locução é globalmente equivalente a um verbo, pelo que «à luz» não desempenha nenhuma função sintática.

Pergunta:

Na análise da oração «minha casa é feia», o termo feia é um predicativo do sujeito; porém, no caso de uma inversão como a seguir, sua classificação geraria uma ambiguidade.

 

Ex.: «Minha casa feia é.»

A palavra feia poderia ser classificada como adjunto adnominal devido à sua proximidade com o substantivo, parecendo, dessa forma, gerar uma frase sem predicativo; e, também, ser classificada como um predicativo fora de sua posição comum.

Eu poderia pôr o termo feia entre vírgulas? Mas, nesse caso, estaria separando o predicativo do verbo. O que seria sintaticamente errado, pois o predicativo é um argumento.

Resposta:

O verbo copulativo ser seleciona um predicativo do sujeito, pelo que uma frase em que ocorra o referido verbo sem um predicativo do sujeito será, em princípio, uma frase incompleta. Com este pressuposto, dificilmente se poderá dizer que «feia» em «minha casa feia é» é ambígua: na verdade, «feia» tenderá a ser interpretada como predicativo, de modo a completar a frase.

Não se deve colocar o predicativo entre vírgulas, se este preceder imediatamente o verbo copulativo, mas ocorre com vírgula se se encontrar à cabeça da frase (construção de topicalização; cf. Textos Relacionados): «Feia, a minha é.»